Por Mariana Chaimovich e Thaís Zappelini*
Artigo publicado originalmente no Jota
No Brasil, falar sobre dinheiro ainda é um grande tabu. Numerosas razões podem ser indicadas para esse fenômeno, começando pelo fato de que o salário mínimo do país é insuficiente para suprir as necessidades básicas de uma família, e está entre os mais baixos do mundo[1]. Levantamento da FGV Social também mostra que o contingente de pessoas com renda domiciliar per capita de até R$ 497 mensais alcançou 62,9 milhões de brasileiros em 2021, o que representa 29,6% da população do país[2].
Pelo menos 12,3 milhões de famílias brasileiras tinham dívidas a vencer em novembro de 2021, conforme estudo realizado pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. De acordo com o Índice de Saúde Financeira do Brasileiro, do Banco Central, a nossa população está em 57 pontos, dentro de uma escala de 0 a 100 pontos, na qual o maior valor remete à melhor condição de saúde financeira (dados de julho/2021)[3].
Em outras palavras, é difícil a relação dos brasileiros e brasileiras com o dinheiro, sendo que pelo menos 48,6% passam por aperto financeiro (Febraban, 2022)[4] e mais de 60% gastam mais do que ganham (IBGE, 2021)[5].
E, apesar da difusão de pagamentos eletrônicos, o dinheiro em espécie ainda é essencial meio de troca, principalmente para a população de baixa renda, de maneira que 53,4% das pessoas preferem utilizar cédulas e moedas para o pagamento das compras, segundo a Fundação Dom Cabral[6].
Em conversa com o ITCN, o rapper Dudu de Morro Agudo, CEO na Hulle Brasil, doutorando e mestre em Educação (Universidade Federal Fluminense) e coordenador executivo do Instituto Enraizados, esclareceu que “a relação do cidadão periférico com o dinheiro é uma relação conturbada, pois o dinheiro continua sendo tabu, é uma eterna busca que se relaciona com necessidade de sobrevivência e realização de sonhos, uma relação de gato e rato”.
Pesquisa do Instituto Locomotiva sobre a “Relação dos brasileiros com serviços financeiros e com caixas eletrônicos” mostrou que 22% dos entrevistados recebem, ao menos em parte, seus rendimentos em dinheiro (dados de agosto/2022). Nesta fatia, destacam-se as classes mais desfavorecidas, de pessoas não bancarizadas, da faixa etária de 35 a 44 anos.
O levantamento também mostra que as principais motivações da preferência pelo uso do papel-moeda residem no fato de que determinados lugares só aceitam este tipo de pagamento (20%), as pessoas estão acostumadas a utilizar dinheiro no dia a dia (16%) e o pagamento em dinheiro garante descontos (15%).
Cerca de 63% dos entrevistados utilizam dinheiro, seja como um dos principais meios de pagamento do cotidiano, recebimento de renda ou realização de saques. Metade dos entrevistados (classe D/E) diz guardar dinheiro em espécie em casa, para uso no dia a dia ou emergências, de modo que 28% declaram guardar entre R$ 51 e R$100 e 25%, entre R$ 101 e R$ 200.
Ademais, cerca de 86% utilizam caixas eletrônicos, o que equivale a 136 milhões de pessoas. Com relação à maior presença de caixas eletrônicos em estabelecimentos diversos, 7 em cada 10 pessoas gostariam disso, sobretudo aquelas que têm o dinheiro como forma de pagamento preferida, as classes mais desfavorecidas e a população da região Nordeste do país. No mais, 8 em cada 10 pessoas bancarizadas gostariam de poder utilizar livremente os caixas eletrônicos, independentemente do banco em que possuem conta e 53% gostariam de usar o caixa eletrônico para serviços como recargas, compra de gift cards, etc., sobretudo jovens, moradores das regiões Norte e Nordeste e pertencentes à classe D/E.
Outro ponto pouco comentado é que ao menos R$ 180,9 bilhões são movimentados anualmente nas favelas. Em 2021, cerca de 8% da população brasileira, ou 17,1 milhões de pessoas, viviam em favelas[7]. O Brasil tem, hoje, 13.151 favelas, o dobro do registrado 10 anos antes[8].
Ocorreu uma expansão de aproximadamente 48% no número de caixas eletrônicos nessas comunidades em relação a 2019, com aumento de 27% de transações. Nas favelas, a média de transações mensais é aproximadamente 25% maior do que nas demais regiões do país. A maior presença desses equipamentos contribui para a circulação local de capitais e melhoria de condições de inclusão financeira, a partir da facilitação do acesso a serviços bancários[9]. À medida que bancarização e acessibilidade têm alcançado as comunidades brasileiras, em razão da demanda que geram, elas passaram a ser vistas como locais de interesse para potenciais investimentos.
Vale destacar que 67% de moradores e moradoras das favelas se autodeclaram de cor preta, o que corresponde a 11,5 milhões de pessoas. Porém, os salários dos negros são menores que dos brancos, e os salários das mulheres negras estão na base da pirâmide. Pensando no total de moradores das favelas, a maioria são mulheres (8,7 milhões), sendo elas também chefes de família; 21% dos lares são compostos por mães solteiras e 62% por casais com filhos (Data Favela e Cufa, 2022)[10].
O dinheiro, ou a falta dele, muitas vezes tem endereço determinado ou determinável, e os dados apresentados neste artigo ilustram bem essa afirmação. Se falar de dinheiro é um tabu, a falta dele é ainda mais difícil de abordar. No caso de acessibilidade a meios de pagamento alternativos, a oferta de opções cabe tanto à iniciativa privada, com o aumento de caixas eletrônicos em áreas periféricas e o transporte de valores por um país continental como o Brasil; como à iniciativa pública, como ocorreu com a estruturação do ecossistema Pix, o open banking e sua evolução, o open finance.
Sobre isso, Dudu de Morro Agudo também destacou que “infelizmente, a questão racial é definidora, no Brasil, nessa relação da população de periferia com o dinheiro, visto que em termos estatísticos, a população negra é o grupo de pessoas com maior evasão escolar, consequentemente com menos formação acadêmica, e por isso ocupam os espaços de subalternidade da sociedade”.
No Instituto Enraizados, organização que utiliza as artes integradas do hip hop como ferramenta de transformação social e busca a formação artística e cidadã, bem como proteção dos direitos, bem-estar e qualidade de vida do cidadão periférico, Dudu conta que todos os projetos “partem de uma lógica antirracista, onde o nosso objetivo inicial é perceber a sociedade que temos e projetar a sociedade que queremos”.
Portanto, pensar em recortes raciais e de faixa de renda para abordar a temática dos meios de pagamentos é essencial não só para problematizar a questão, mas também para apresentar as alternativas viáveis para minimizar a vulnerabilidade de parcela significativa da população brasileira. Disponibilizar dinheiro em espécie não significa impedir a população de ter acesso a cartões — de crédito e débito —, a boletos ou a outras possibilidades de pagar suas contas. Trata-se exclusivamente de uma opção a mais. A população agradece.
[1] Informação disponível em: https://appsindicato.org.br/salario-minimo-do-brasil-esta-entre-os-mais-baixos-do-mundo/. Acesso: 18 jan. 2023.
[2] Informação disponível em: https://portal.fgv.br/noticias/mapa-nova-pobreza-estudo-revela-296-brasileiros-tem-renda-familiar-inferior-r-497-mensais. Acesso: 18 jan. 2023.
[3] Informação disponível em: https://valorinveste.globo.com/objetivo/organize-as-contas/noticia/2021/07/19/pesquisa-aponta-que-70percent-dos-brasileiros-gastam-tudo-ou-mais-do-que-ganham.ghtml. Acesso: 18 jan. 2023.
[4] Informação disponível em: https://www.digitalmoneyinforme.com.br/mais-de-48-dos-brasileiros-passa-por-aperto-financeiro-diz-febraban/. Acesso: 18 jan. 2023.
[5] Informação disponível em: https://monitormercantil.com.br/mais-de-60-dos-brasileiros-gastam-mais-do-que-ganham/. Acesso: 18 jan. 2023.
[6] Informação disponível em: https://diariodocomercio.com.br/economia/brasileiros-optam-pelo-dinheiro-em-especie/. Acesso: 18 jan. 2023.
[7] Informação disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/cerca-de-8-da-populacao-brasileira-mora-em-favelas-diz-instituto-locomotiva/. Acesso: 18 jan. 2023.
[8] Informação disponível em: https://investnews.com.br/esg/populacao-das-favelas-brasileiras-ultrapassa-bielorussia-luxemburgo-e-servia. Acesso: 18 jan. 2023.
[9] Informação disponível em: https://tecban.massinteligencia.com.br/publico.html?PublicId=a8ccabef9d5b4111b6dfcc4e24f3dd62. Acesso: 18 jan. 2023.
[10] Informação disponível em: https://investnews.com.br/esg/populacao-das-favelas-brasileiras-ultrapassa-bielorussia-luxemburgo-e-servia. Acesso: 18 jan. 2023.
Mariana Chaimovich – Advogada, legal advisor no ITCN (Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário), colaboradora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV, mestre em Direito Internacional pela USP e doutora pelo Instituto de Relações Internacionais da USP
Thaís Zappelini – Advogada, consultora de Relações Governamentais no ITCN (Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário), pesquisadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP, Doutora e Mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).