Por Suzana C. Cencin Castelnau e Arthur Barreto*
Artigo publicado originalmente na ConJur
A Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo editou recente resposta a consulta de contribuinte a respeito do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD). Foi questionada a aplicabilidade do limite de isenção do ITCMD, de 2,5 mil Ufesps, para o caso de doação de quotas do capital de sociedade limitada para filhos dos sócios (resposta à Consulta nº 24.429/2021 — RC 24.429).
Nesse sentido, embora o escopo da consulta fosse discutir se a operação estaria acobertada por isenção do ITCMD, a Sefaz/SP aprofundou questão incidental, por exemplo, a definição da base de cálculo do imposto nesses casos, extrapolando inclusive o escopo do questionamento.
De acordo com a legislação paulista, a base de cálculo do ITCMD, como regra geral, é o valor venal do bem ou direito transmitido, entendido como o valor de mercado na data da doação, conforme artigo 9º, caput e §1º, da Lei Estadual nº 10.705/2000. Como existem diversos casos em que não há, ou não é disponibilizado, o valor venal de bens, há outras regras na própria Lei do ITCMD para a definição da base de cálculo, como se dá no caso de transmissão de quotas ou ações de sociedade não cotadas em bolsa de valores e que não tenham sido objeto de negociação nos últimos 180 dias.
Assim, o artigo 14, parágrafos 2º e 3º, da mesma lei determina que, no caso de ações ou quotas representativas do capital social de sociedades, o valor será determinado de acordo com a cotação média na bolsa de valores, na data de transmissão ou, não havendo negociação em bolsa ou não tendo havido qualquer tipo de negociação das ações nos últimos 180 dias, “admitir-se-á o respectivo valor patrimonial”.
A norma é bastante clara e objetiva, atendendo à necessidade prática de identificar um valor que sirva de base de cálculo quando não há um valor de mercado definido, o que é muito comum em sociedades limitadas ou sociedades por ações de capital fechado, ainda mais empresas familiares em que muitas vezes inexiste sequer intenção de negociar as quotas ou ações no mercado.
Além disso, o valor patrimonial das quotas ou ações considera os reflexos contábeis em seu patrimônio líquido, decorrentes de lucros ou prejuízos correntes ou acumulados, aumentos ou reduções de capital etc., distanciando-se assim de um valor meramente histórico e já se aproximando de parâmetros de mercado, por mais que não represente um “preço” pelo qual tais quotas poderiam ser negociadas — daí sua suficiência para servir como base de cálculo do ITCMD.
A Sefaz/SP, na RC 24.429, distorceu o questionamento feito pelo contribuinte para encaixar opinião própria acerca do tema, entendendo que o fato de a legislação “admitir” o uso do valor patrimonial indicaria que o valor de mercado seria a regra, sendo que, na sua ausência, o valor patrimonial das quotas ou ações só seria admissível se e na medida em que refletisse o valor de mercado das quotas ou ações, isto é, nas palavras da RC 24.429, o “valor com que referidas quotas de patrimônio seriam passíveis de ser negociadas no mercado — preço de venda”.
O Fisco paulista partiu da premissa defendida por parte da doutrina de que existiria um valor patrimonial “contábil” e outro valor patrimonial “real”, sendo este último o mais próximo do valor de mercado. Na prática, significaria dizer que, para cada doação de quotas não negociadas de uma sociedade não negociada, seria necessário preparar um laudo de avaliação da sociedade, para que se chegasse ao valor patrimonial “real”, o que oneraria ainda mais o contribuinte, já que ele teria que arcar com os custos de emissão do laudo de avaliação, além do pagamento do tributo.
A interpretação evidentemente extrapola a Lei Estadual nº 10.705/2000, além de ser contraditória com a própria lei. Se o valor da base de cálculo, inclusive de quotas sociais ou ações devesse ser sempre o de mercado (ou o mais próximo disso), a previsão legal autorizando o uso do valor patrimonial das quotas ou ações seria totalmente desnecessária. Isso porque já existe a regra geral de utilização do valor venal (= de mercado), como mencionado acima, havendo hipóteses em que a legislação expressamente prevê a utilização de outros critérios. Assim, parece-nos totalmente descabida a forma de interpretação do Fisco, já que o legislador não deve incluir nas normas regras sem a intenção de que sejam aplicadas e o intérprete do Direito jamais pode desconsiderar a letra da lei, sobretudo em questões tributárias.
Levando o argumento mais adiante, tratando-se de uma sociedade sem liquidez no mercado e sem comprador potencial, o valor patrimonial real da empresa poderia ser, inclusive, tido como sendo zero.
Nesse contexto, a interpretação dada pela Sefaz/SP foi ilegal ao restringir o alcance de norma legal sem que a própria lei o fizesse. Além disso, a interpretação não faz sentido no próprio panorama legal que disciplina a base de cálculo do ITCMD.
Apesar de ser um posicionamento questionável, existe de fato um risco de que os contribuintes, ao utilizarem o valor patrimonial contábil para base de cálculo do ITCMD nas doações de quotas de sociedades limitadas ou ações de sociedades por ações de capital fechado, sejam questionados e mesmo autuados pelo Fisco estadual, com a cobrança do ITCMD sobre o que seria o “valor patrimonial real” das quotas, acrescido das penalidades pertinentes. Cabe aos contribuintes mensurar esse risco caso a caso e, se necessário, buscar se resguardar mediante medida judicial.
Suzana C. Cencin Castelnau é sócia do escritório Donelli e Abreu Sodré Advogados – DSA.
Arthur Barreto é advogado tributarista do escritório Donelli e Abreu Sodré Advogados – DSA.