Por Alexandre Fidalgo (foto)*
Artigo publicado originalmente no Estadão
A participação do presidente Jair Bolsonaro em ato que pedia “intervenção militar” e o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília, gerou polêmicas e diversas críticas nos três poderes. A atitude entendida pela sociedade como um ato em defesa da volta do regime militar, após 30 anos de democracia, levantou a discussão até mesmo sobre a possibilidade de um processo de abertura de impeachment.
A manifestação do presidente ocorreu no domingo (19/4), exatamente no mesmo dia em que o Brasil chegava a um total de mais de 2.400 mortes confirmadas por conta da pandemia do coronavírus. Ministros do STF, governadores e parlamentares se manifestaram sobre o assunto no sentido de criticar a postura de Bolsonaro.
É preciso lembrar o direito fundamental à liberdade de expressão, que é assegurado pela Constituição Federal. Foi esse direito que permitiu vários protestos em diversas cidades do Brasil, em 2015, e outros anteriormente como a chamada marcha da maconha, em que manifestantes defendiam publicamente a liberação dessa substância. Naquela época das marchas, muito se falou que a manifestação popular representava uma incitação ao crime, previstos nos artigos 286 (incitação ao crime) e 287 (apologia ao crime) do Código Penal. O argumento era o de que não deveria haver liberdade alguma, tampouco de expressão, quando se defendesse a prática de alguma ilegalidade. No caso, a maconha é classificada como um entorpecente.
O caso das marchas da maconha foi parar no STF. Os ministros analisaram a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187. Eles decidiram garantir duas liberdades individuais: o direito de reunião e o direito à livre expressão de pensamento.
O Supremo, acertadamente, entendeu que, a despeito de a maconha constituir efetivamente uma droga ilícita incluída na relação de entorpecentes, a manifestação que ocupou as ruas buscava contrapor esse entendimento majoritário, sustentando a descriminalização da droga. Os ministros consideraram que inexistiam os elementos típicos dos artigos 286 e 287, do Código Penal, vez que a hipótese revelava o exercício de um direito de reunião e de manifestação de pensamento.
É importante ressaltar que a garantia da contraposição das minorias às maiorias representa efetivamente a ideia democrática da liberdade de expressão. Aliás, Hans Kelsen, jurista e filósofo austríaco, dizia que “a vontade da comunidade, numa democracia, é sempre criada através da discussão contínua entre a maioria e a minoria, através da livre consideração de argumentos a favor e contra certa regulamentação de uma matéria”.
Agora, novamente, houve manifestações deflagradas nas ruas do Brasil. No meio delas, apareceram algumas faixas com pedidos de intervenção militar e a volta do Ato Institucional nº 5. Na visão dos manifestantes, seria necessária a aplicação do artigo 142 da Constituição Federal. A Lei Complementar 97, de 9 de junho de 1999, regulamentando o artigo, estabelece que as Forças Armadas se submetem ao Ministério do Estado e da Defesa, órgão do Poder Executivo sob o comando do presidente da República.
Nesse contexto, como se estabeleceria o direito fundamental da livre manifestação de pensamento se a proposta tivesse a finalidade de produção de um golpe militar? A ideia aqui não é apresentar as razões retrógradas ou mesmo estapafúrdias daqueles que defendem a ideia de a nação ser novamente controlada por forças autoritárias. A questão é: a defesa pública dessa corrente está inserida no direito fundamental da livre manifestação de pensamento? A resposta é não.
Qualquer manifestação em defesa de um golpe militar viola a forma política de como o estado brasileiro deve representar os valores de sua nação. O artigo 1º da Constituição Federal assegura que o país é um Estado Democrático de Direito.
Um Estado Democrático significa que o governo é formado pelos cidadãos, em que os representantes são escolhidos livremente pelo voto. Estado de Direito que impõe estruturas estatais pautadas pelos critérios do Direito, e não pelo uso da força, da prepotência ou do arbítrio. A ideia de intervenção militar como golpe constitui ruptura ao plano jurídico social existente, com rompimento das garantias dos direitos fundamentais, sociais e políticos. Isso significa dizer que o povo, titular do poder num Estado Democrático, renuncia o controle de sua vida, oferecendo-a ao poder autoritário. Portanto, diante desse cenário atual, é possível concluir que manifestar apoio à ruptura do Estado Democrático de Direito é efetivamente romper com o modelo de Estado que a atual sociedade, depois de anos de luta, deve preservar.
*Alexandre Fidalgo, doutorando em Direito pela USP; mestre em Direito pela PUCSP; sócio titular do escritório Fidalgo Advogados