Por Isac Costa*
Artigo publicado originalmente na ConJur
*o texto é baseado em palestra conduzida em 21.jun.2022 por mim, em painel com o doutor Eduardo Salomão Neto e a doutora Juliana Sato, da 110ª Reunião de Debates do IBR (Instituto Brasileiro de Estudos de Recuperação de Empresas), presidido pelo professor Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, a quem agradeço a oportunidade de ter participado deste debate tão qualificado.
Estado, mercado e direito de propriedade
Estado e mercado não são adversários na economia, pois o Direito dá forma ao mercado, como diz NATALINO IRTI, e o contrato é a “veste jurídica de uma operação econômica”, como ensina ENZO ROPPO. A segurança jurídica é necessária para estabilizar as expectativas dos agentes econômicos e o direito de propriedade é elemento essencial do sistema capitalista.
A concreção da propriedade depende de tecnologias de escrituração, isto é, do devido mapeamento entre sujeitos de direito e objetos de direito. Ainda, precisamos registrar a dinâmica dos fatos jurídicos, das transações que resultam do exercício da atividade econômica.
Tradicionalmente, recorremos a entes centralizados estatais ou privados para assegurar o sigilo, a integridade e a autenticidade dos dados relativos a direitos de propriedade.
O desenvolvimento de algoritmos criptográficos fortaleceu os sistemas mantidos por esses entes centrais. A criptografia é um conjunto de métodos matemáticos para viabilizar a comunicação na presença de um adversário: não queremos que o teor da mensagem seja conhecido (confidencialidade), que esta seja adulterada (integridade), nem que um terceiro se faça passar por uma das partes (autenticidade). Por isso, a criptografia é importante para sistemas que gerenciam a propriedade de bens.
Tomamos como naturais todos os registros de pessoas, imóveis, notas e títulos, juntamente com os prestadores de serviços de escrituração, custódia, depositária central, centrais registradoras e infraestruturas de mercado financeiro. Achamos natural que o Banco Central seja central.
Descentralização e interoperabilidade
Com a criação do bitcoin, surgiu uma arquitetura de sistemas fundada no armazenamento compartilhado de dados e no processamento de transações em rede, com a colaboração de seus participantes.
Como alternativa a sistemas centralizados relativamente isolados, nos sistemas descentralizados o registro completo das informações é compartilhado e alterado em sincronia por todos os participantes à medida que as transações ocorrem. Segundo um metrônomo digital, todos mantêm uma cópia idêntica de um “livro razão” ao longo do tempo — os algoritmos criptográficos eliminam incentivos para que as cópias sejam adulteradas.
O contraste entre sistemas centralizados e descentralizados é semelhante ao dilema entre firma (hierarquia) e mercado, identificado por RONALD COASE, ao investigar quando um agente econômico decide internalizar uma atividade e quando opta por realizá-la mediante um contrato em mercado.
As firmas de COASE são como os sistemas centralizados, que mantêm internamente os dados necessários para o seu funcionamento. Quando novos dados são necessários, podem buscá-los externamente (em uma chamada pontual de programa, como no caso do open banking) ou, então, negociar o compartilhamento antecipado e sincronizado dos dados, a fim de tornar a comunicação mais eficiente.
A decisão entre internalizar ou não decorre da avaliação dos custos de transação. Por exemplo, o custo (político, econômico e social) de um sistema de pagamentos global impede a unificação dos sistemas de pagamentos dos Estados, levando a um mercado de câmbio com burocracias, taxas e ineficiências, dificultando o fluxo internacional de capitais.
O problema das transferências internacionais de recursos foi justamente um dos motivos determinantes da criação do bitcoin — seria possível ter uma moeda comum global para transações eletrônicas, independente de uma empresa ou de um Estado? Extrapolando esse raciocínio, por que não temos hoje um “cartório” global? Por que é difícil inventariar os bens de uma empresa quando estão geograficamente dispersos? Por que é difícil garantir operações com bens situações no estrangeiro? Por que uma oferta pública de ações é circunscrita a um único país? Por que precisamos de mecanismos como depositary receipts para negociar ações de uma companhia em múltiplos países?
Blockchain e o futuro do direito de propriedade
A arquitetura blockchain, que dá suporte ao funcionamento do bitcoin, pode ajudar a resolver esses problemas. Essa tecnologia foi expandida para outras aplicações com o surgimento da rede Ethereum em 2015.
Podemos afirmar que o bitcoin está para uma calculadora (capaz de fazer as quatro operações aritméticas) como o Ethereum está para um smartphone (com um sistema operacional que nos permite programar aplicativos diversos, inclusive uma calculadora, mas não só).
De modo simplificado, a representação de valor em uma rede blockchain é um título digital (token), sendo possível escrever programas para automatizar transações com esses tokens.
Imagine um contrato de distribuição de livros, envolvendo uma editora, distribuidoras, livrarias e autores. Com uma solução blockchain, todo o fluxo de vendas, pagamentos e conciliações pode ser realizado dentro de uma “carteira digital” com os valores denominados em uma (cripto)moeda específica. Quando um consumidor paga por um livro, o valor é automaticamente repartido entre todos os envolvidos, conforme regras previamente estabelecidas.
Tokens e os direitos de seus titulares
Os programas que automatizam as transferências de tokens em uma rede blockchain que espelham cláusulas pré-estabelecidas são chamados de smart contracts (eles não são contratos nem são inteligentes). Graças a essa flexibilidade, foram criados tokens que refletem relações de dívida e de participação e outras regras de negócio.
Algumas empresas utilizaram tokens para captar recursos globalmente, prometendo a seus adquirentes participação nos resultados dos projetos e o direito de tomar parte nas deliberações. Surgiram, assim, as initial coin offerings (ICOs). Diante de informações insuficientes sobre os projetos e os riscos envolvidos, os reguladores atuaram intensamente para coibir essas ofertas.
Procurando evitar a qualificação dos tokens emitidos como valores mobiliários (securities), foram concebidos modelos de negócios que ofereciam aos compradores desses tokens alguma utilidade (descontos na aquisição de produtos ou serviços, recompensas por fidelidade) e a possibilidade de ganhos na negociação em mercados secundários administrados exchanges, com papel híbrido de corretora, bolsa e custodiante.
Desse modo, surgiu uma classificação dos tokens segundo a sua função. As criptomoedas (payment tokens) são destinadas a pagamentos; os tokens de participação (security tokens) refletem relações típicas de um valor mobiliário; e, residualmente, os tokens de utilidade ou de consumo (utility tokens) são os que possuem algum valor de uso ou valor de troca, mas não se enquadram nos critérios de incidência da regulação do Banco Central ou da CVM.
Na prática, essa classificação não é trivial e toma como base a descrição de cada projeto contida em documentos conhecidos como whitepapers. Quando o regulador entende que se trata de valor mobiliário, a emissão de alerta ou processo sancionador inviabiliza o negócio. Por outro lado, há dificuldades para que a empresa e a oferta obtenham registro pelos moldes tradicionais.
Vale mencionar também as stablecoins, destinadas a manter paridade de preços com ativos tradicionais, para facilitar transações sem que seja necessário retornar ao sistema financeiro tradicional e com proteção à alta volatilidade desses mercados.
Ainda, em 2021 os tokens não fungíveis (NFT) ganharam popularidade, representando títulos digitais da propriedade de bens (materiais ou não) conectados em jogos, redes sociais e, mais recentemente, em ambientes virtuais popularizados com o nome de metaversos. Algumas transações com NFTs tiveram valores exorbitantes, respaldados por um discurso de consumo conspícuo, na crença em uma nova internet (web3) e na ideia de um passaporte digital para clubes exclusivos.
De criptomoedas a criptoativos
De criptomoedas com caráter meramente especulativo, esses tokens passaram a ser considerados (cripto)ativos, no sentido contábil do termo ativo, pois são recursos controlados pelo seu titular do qual se esperam benefícios econômicos futuros, ainda que seja apenas o ganho de capital pela sua venda.
No auge da euforia dos criptoativos em 2021, o valor total de mercado dos milhares de tokens chegou a US$ 3 trilhões. Porém, desde novembro de 2021, esse valor sofreu desvalorização de mais de 50%, em virtude do aumento das taxas de juros, a diminuição do apetite ao risco pelos investidores, a recorrência de fraudes e ataques cibernéticos e algumas dificuldades no amadurecimento da tecnologia. A promessa de proteção contra a inflação e ausência de correlação com os mercados tradicionais ainda não se concretizou.
Contudo, o interesse dos agentes de mercado sobre o tema tem aumentado, especialmente em razão do anúncio de grandes investimentos de fundos de venture capital no setor e da entrada de instituições tradicionais, criando tokenizadoras de ativos diversos como precatórios, direitos de solidariedade de atletas, cotas de consórcios, créditos de carbono, excedentes de energia elétrica e recebíveis imobiliários ou do agronegócio, dentre outros.
Escrituração, avaliação e controle
A popularização dos criptoativos deve ser interpretada à luz dos avanços legais e regulatórios recentes em matéria de modernização dos sistemas de garantias, securitização de ativos, digitalização de recebíveis, como as duplicatas escriturais e os recebíveis de arranjos de pagamento, as fintechs de crédito e a adaptação da regulação de plataformas de crowdfunding para fomentar o acesso de pequenas e médias empresas ao mercado de capitais.
Obviamente, há preocupações com a estabilidade financeira e a eventual insolvência das empresas que prestam serviços relacionados a criptoativos e das empresas que os possuem em seu patrimônio, do que decorrem pelo menos três questões fundamentais.
Primeiro: em quais contas do balanço patrimonial devem ser registrados? Certamente, a resposta dependerá de cada caso, mas é necessária alguma uniformização para evitar discrepâncias.
Segundo: que base de mensuração deve ser adotada? Vale notar a existência de vários ambientes de negociação ou, em outros casos, da inexistência de um mercado líquido (como o dos NFT). Em operações de permuta, a ausência de laudos de avaliação confiáveis pode ensejar fraudes e distorções nas transações e demonstrações financeiras das empresas e no controle de garantias prestadas, especialmente em razão da alta volatilidade desses ativos.
Terceiro: como evitar a blindagem patrimonial via tokens? Certos criptoativos podem ser utilizados para ocultar patrimônio. Ainda, podem dificultar a constrição de ativos, quando apenas o titular da chave pública pode cedê-los, sendo refratário a comandos executivos do Poder Judiciário.
O futuro
Além dos pontos mencionados, há preocupações relativas à proteção do investidor-consumidor, ao regime tributário aplicável, a prevenção à lavagem de dinheiro e ao contágio do sistema financeiro tradicional em caso de estouro de bolhas especulativas.
Para muitos, os criptoativos não são uma moda passageira e vivemos uma ressignificação dos títulos de crédito, dos sistemas de registro de propriedade, de garantias e do próprio sistema financeiro nacional.
Por ora, cabe a quem estuda, produz e aplica o direito compreender o fenômeno para que lhe seja criado um “traje jurídico” adequado, que não seja apertado demais para sufocar a inovação nem frouxo demais a ponto de perder o seu propósito. Estado e mercado seguem, assim, em sua eterna coreografia. E a criptoeconomia é, de certo modo, mais um ritmo ao qual terão que se adequar.
Isac Costa é professor do Ibmec e do Insper e sócio do Warde Advogados. Doutorando (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito. Engenheiro de Computação (ITA). Ex-analista de mercado de capitais (CVM).