Por Marilia Canto Gusso e Dayane Garcia Lopes Criscuolo
Artigo publicado originalmente no Estadão
A pandemia que assola o mundo tem sido notícia diária nos últimos meses. Os reflexos da Covid-19 surgem nas questões cotidianas decorrentes das medidas adotadas pelas autoridades visando à sua contenção, tanto no campo da saúde quanto da economia.
Por conta da fácil transmissão do coronavírus, o isolamento social foi a principal estratégia adotada no intento de deter a contaminação e o esgotamento da capacidade de atendimento dos hospitais em todo o país. Assim, foi decretada a quarentena obrigatória, tendo o comércio sido em grande parte fechado e as aulas presenciais suspensas, restando mantidas apenas as atividades dos setores considerados como essenciais.
Não por outra razão, muitas dúvidas surgiram por parte dos consumidores, na medida em que o isolamento social impossibilitou ou alterou as formas como são prestados determinados serviços. Os serviços prestados pelas instituições privadas de ensino, sem dúvida, foram diretamente afetados, o que levou muitos pais e alunos a questionar se precisariam continuar arcando com as mensalidades.
As principais dúvidas que surgiram: devo pagar a mensalidade se a prestação dos serviços está suspensa? Será que consigo um desconto diante da situação econômica do país? Tenho de cumprir o contrato se tiver aulas online e fazer o pagamento integral?
Para responder a esses questionamentos, é preciso ter em mente que as mensalidades escolares representam o parcelamento do valor total cobrado pela instituição, por ano, para prestar os serviços educacionais. Isto é, o intuito de a cobrança ser realizada de forma mensal é de, tão somente, facilitar o pagamento pelas famílias.
E, neste sentido, encontra-se a Nota Técnica (NT nº 14/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ), divulgada no dia 26 de março, pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), ligada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Além disso, ainda de acordo com este documento, não faria sentido suspender pagamentos ou obter descontos nas mensalidades em função da interrupção de aulas por um determinado período, considerando que poderão ser repostas em outro momento. Ou seja, se o serviço será prestado em sua integralidade, o pagamento também deve ser feito em sua integralidade. Sob esse raciocínio, o não pagamento pode ser encarado como quebra de contrato pelo aluno, ensejando as penalidades daí decorrentes – como perda da vaga, por exemplo.
Apenas nos casos em que não houver possibilidade de recuperação das aulas ou utilização de métodos online, seria aconselhado o cancelamento do contrato ou pedido de desconto proporcional, com a restituição total ou parcial dos valores devidos. Esta é uma forma de pagamento que não prejudica o consumidor, nem compromete economicamente o fornecedor. Assim, não resta inviabilizada a futura continuidade da prestação de serviços.
O diretor do Procon/SP, Fernando Capez, esclareceu recentemente que todos os contratos foram afetados pela pandemia, em diversos setores da economia, razão pela qual deve-se buscar equilíbrio, discutir as questões pontuais e, sempre que possível, cumprir as obrigações assumidas, sob pena de prejuízos irreversíveis. Evidentemente, as famílias que estiverem com dificuldades financeiras, em razão da redução de rendimentos, devem procurar a instituição de ensino e negociar de acordo com a sua situação. Cada caso concreto merece ser avaliado e discutido individualmente.
Outra questão relevante relacionada ao assunto diz respeito ao anúncio feito pelo Ministério da Educação acerca da redução dos dias letivos em razão da pandemia (Medida Provisória 934/2020). Isto quer dizer que as instituições de ensino poderão cumprir o calendário escolar em menos de 200 dias letivos, desde que cumprida a carga horária determinada por lei (educação básica – 800 horas; ensino superior – horas determinadas pelas diretrizes curriculares dos cursos).
Além disso, a medida autoriza a conclusão antecipada de alguns cursos na área de saúde. O ato tem caráter excepcional e valerá enquanto durar a situação de emergência da saúde pública. A MP viabiliza a execução posterior do contrato de prestação de serviços educacionais de forma integral.
Em sentido contrário, no entanto, são as mais de 50 propostas legislativas, visando a redução das mensalidades escolares em percentuais que variam de 10% a 50%, apresentadas nas Assembleias Legislativas, na Câmara dos Deputados e Câmaras Municipais, assim como no Senado. Em Juiz de Fora, por exemplo, no último dia 9, foi aprovado pela Câmara Municipal o Projeto de Lei nº 30/2020, que reduz em 30% o valor das mensalidades das escolas particulares de educação infantil e ensino fundamental.
Em São Paulo, foi aprovado e publicado, no dia 3/4, pela Assembleia Legislativa, o Projeto de Lei nº 203/2020, que determina que, enquanto perdurar o Plano de Contingência do Estado de São Paulo para Infecção Humana pelo novo coronavírus – Covid-19, as instituições de ensino fundamental, médio e superior da rede privada do Estado de São Paulo estariam obrigadas a reduzir as mensalidades em, no mínimo, 30%, podendo este desconto ser aplicado a partir do 31º dia de suspensão das aulas. Já as instituições de ensino de calendário ininterrupto, como creches, internatos, devem aplicar o desconto imediatamente.
Pela redução, também, é o Projeto de Lei nº 1079/2020, aprovado pela Câmara Legislativa do Distrito Federal. Seu texto inicial, aprovado em 1º turno, coincidia com o projeto levado à votação pela Assembleia Legislativa de São Paulo. No entanto, seu texto foi modificado para prever: (i) redução de, no mínimo, 30% e, no máximo 50%, dependendo da condição individual de cada família, que será negociada em Câmaras de Negociação criadas pelas instituições de ensino; (ii) a possibilidade de, comprovando a instituição de ensino ter feito a reposição do conteúdo programático, ser cobrada do consumidor a diferença abatida, sem juros e sem correção monetária, de forma parcelada e após o terceiro mês depois de encerrado o plano de contingência e (iii) excluir as micro e pequenas empresas inscritas no Simples Nacional, que poderão pactuar os descontos livremente.
Os três projetos aprovados preveem multas em caso de descumprimento de suas disposições, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, pelos órgãos responsáveis pela fiscalização, em especial o Procon. Trazem, ademais, como justificativa de sua proposição evitar o desequilíbrio econômico gerado entre o fornecedor, que estaria com suas despesas reduzidas, e o consumidor, que vivencia grave crise econômica.
Referidas propostas, além de não virem acompanhadas por nenhum estudo ou justificativas mais aprofundadas acerca da questão e do respectivo impacto econômico, deixam de levar em consideração que ambas as partes desta relação contratual estão sofrendo graves prejuízos decorrentes do distanciamento social. Uma grande parcela dos consumidores, certamente, teve sua renda comprometida, mas a instituição de ensino não necessariamente terá uma redução de 30 ou 50% no seu custo. Isso porque, ainda que sua estrutura física não esteja sendo utilizada, na grande maioria dos casos as despesas mais significativas são, justamente, a manutenção do espaço e do quadro de funcionários.
Ademais, e não menos importante, não se pode deixar de levar em consideração os custos para a implementação do sistema de ensino à distância, que dentro do contexto de uma pandemia, não pode ser considerada como um risco de sua atividade pura e simplesmente, mas como um meio de garantir a prestação do serviço de educação outrora contratado, inviabilizado por um caso fortuito ou força maior, isto é, para o qual o fornecedor não contribuiu.
Questão ainda mais relevante reside no fato de que estas normas são, evidentemente, inconstitucionais. Primeiro porque permitem a interferência do Poder Público em relações essencialmente privadas. Segundo, porque as Assembleias e Câmaras Legislativas, assim como o Senado, são órgãos incompetentes para legislar acerca da matéria, que compete exclusivamente ao Congresso.
Não por outra razão, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios manifestou-se pela suspensão da votação do Projeto de Lei nº 1079/2020, já que seu flagrante vício de inconstitucionalidade poderia criar expectativas inconsistentes para as partes envolvidas nesta relação contratual, bem como destacou que é da União a competência para legislar sobre política de preços e condições contratuais de instituições privadas de ensino.
É importante destacar, ademais, que referidas leis foram editadas em evidente confronto com a Nota Técnica emitida pelo Senacon que, quando elaborada, contou com a colaboração de diversos Procons Estaduais, assim como levou em consideração a jurisprudência pátria acerca das discussões havidas sobre mensalidades escolares. Leis inconstitucionais geram uma evidente insegurança jurídica, aumentam a instabilidade neste momento atual, na medida em que podem ser revertidas pelo Judiciário e, ainda, podem dar margem, no futuro, à cobrança dos descontos irregulares pelas escolas.
Na última sexta-feira, dia 24, foi publicada Nota Técnica Nº 17/2020/DEE/CADE pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), alertando sobre os efeitos negativos acerca dos projetos que tratam do desconto em mensalidades escolares durante a pandemia. De acordo com o Órgão, medidas deste tipo podem gerar: (i) desemprego ou menores salários; (ii) dificuldade de realocação dos profissionais de educação no mercado durante a pandemia; (iii) diminuição da demanda agregada e arrecadação de impostos e, por consequência, dificuldades do Estado em gerir o orçamento referente à saúde pública; (v) concentração de mercado, na hipótese de quebra de instituições privadas com menor possibilidade de suportar os descontos temporários; e (iv) maior comprometimento do orçamento familiar com educação, em caso de falência dos estabelecimentos privados mais acessíveis (e mais suscetíveis à quebra, caso sejam obrigados a dar descontos temporários sem uma redução de custo proporcional).
Além disso, e não menos importante, destaca o CADE que os descontos determinados por lei ou por decisão judicial, “em especial se aplicado de forma casuística, mas com critérios diferenciados, pode desconsiderar qual é a real situação financeira de cada estabelecimento, tratando de maneira desigual competidores” e adiciona “[M] mesmo quando o desconto é idêntico entre agentes (a exemplo de um desconto linear determinado por lei), é possível que agentes mais agressivos do ponto de vista concorrencial possuam menor lucro e, portanto, menor capacidade de gestão orçamentária em épocas de crise. Ao impor regras de desconto idênticas do lado da oferta, mesmo que idênticas, é possível impor um sacrifício muito maior a alguns estabelecimentos em relação a outros.”.
Esta ação, de início vista como uma forma de proteger exclusivamente os estudantes, poderá gerar custos sociais demasiados no futuro e, ao final, não conceder a proteção almejada. Destaca o Órgão que “ao impor um desconto uniforme, pode-se punir empresas com rivalidade intensa, porque não terão como arcar com diminuições de gastos no mesmo patamar de empresas que possuem elevada margem de lucro. Além disto, caso justamente as empresas com rivalidade intensa venham a falir, o mercado ficará mais concentrado e sem agentes do tipo maverick, com menor custo e com capacidade de disciplinar os preços do mercado, o que poderá, talvez, acarretar uma pressão de preços para cima, pós-pandemia”. Assim, pontua que, neste cenário, seria melhor deixar a negociação privada funcionar.
Desta maneira, a melhor solução, ainda, é a manutenção do diálogo entre os consumidores e os fornecedores, para que se entendam e resolvam a questão da melhor forma possível, já que são as partes legitimadas a discutir e rever as cláusulas do contrato por eles firmado. Deve haver bom senso e transparência de ambos os lados. Somente um lado não pode assumir o ônus da pandemia. Cada caso específico pode ser negociado para que não haja desequilíbrio na relação contratual.
*Marilia Canto Gusso é sócia da área Cível do WZ Advogados; Dayane Garcia Lopes Criscuolo é advogada da área Cível e Concorrencial do WZ Advogados