Por João Emmanuel Cordeiro Lima e Anita Pissolito Campos*
Artigo publicado originalmente no Estadão
Na última reunião do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), realizada em fevereiro, uma discussão se destacou. Conselheiros e representantes da academia queixaram-se da complexidade gerada pela Lei 13.123/2015, conhecida como Lei de Acesso à Biodiversidade, para as pesquisas envolvendo o Sars-Cov-2, vírus responsável pela pandemia global da Covid-19 que vem chacoalhando o mundo desde o final de 2019.
O CGen é um conselho nacional voltado à gestão dos recursos genéticos existentes na biodiversidade brasileira e dos conhecimentos tradicionais a eles associados. O órgão, que é vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, conta com representantes do governo, do setor empresarial, das comunidades tradicionais e da academia. É responsável por regular questões relevantes relativas à implementação da referida lei. Justamente por isso, faz todo sentido que o debate acima tenha ocorrido nesse foro.
A Lei de Acesso à Biodiversidade regulamenta a realização de P&D com espécies da biodiversidade brasileira e a repartição dos benefícios daí decorrentes. Essa norma tem sua origem ligada ao mais importante tratado internacional de proteção da biodiversidade, a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). Neste acordo internacional definiu-se que os países de origem de cada recurso genético poderiam fixar as regras a serem observadas por quem quisesse acessá-los e exigir parte dos benefícios decorrentes de sua utilização. Esse mecanismo passou a ser conhecido mundialmente como ABS, sigla em inglês para access and benefit-sharing.
A motivação por trás da criação do mecanismo de ABS era simples. A biotecnologia avançava rápido no fim da década de 80 e sabia-se que os países desenvolvidos tinham capacidade tecnológica e dinheiro para transformar recursos genéticos da biodiversidade em produtos de alto valor agregado, como cosméticos e medicamentos. Para tanto, muitas vezes usariam recursos encontrados em países subdesenvolvidos sem dar nada em troca. O mecanismo de ABS buscava resolver essa injustiça, ao mesmo tempo em que gerava recursos para a conservação da biodiversidade e promovia a sua valorização. Foi daí que nasceu a Lei de Acesso à Biodiversidade brasileira.
Voltando ao caso do Sars-Cov-2, as manifestações feitas na reunião do CGen foram no sentido de que essa lei estaria dificultando as pesquisas com esse vírus, especialmente o compartilhamento do material com o exterior. A questão que pretendemos colocar aqui é se uma pesquisa envolvendo esse vírus de fato estaria sujeita à regulação nacional.
A dúvida decorre do fato de que, apesar de o Sars-Cov-2 ter origem na China, a nossa lei estabelece que todos os microrganismos coletados em substrato do território nacional são considerados parte do patrimônio genético brasileiro. Assim, à luz de uma leitura literal desse regramento, o vírus coletado aqui poderia se enquadrar nessa definição, caso se considere que os fluidos do ser humano, de onde ele é isolado, fazem parte da noção de substrato, tema que por si só renderia um bom debate. Porém, entendemos que esse fato não é suficiente para acarretar a aplicação da legislação brasileira a patógenos, como o Sars-Cov-2.
A razão para tanto é simples e deita raízes na própria motivação que norteou a criação do mecanismo de ABS em todo o mundo, qual seja: a valorização e conservação da biodiversidade, e partilha dos benefícios extraídos desse ouro verde. Diferentemente do que se dá quando alguém está buscando a cura do câncer em uma molécula guardada em uma planta nacional, o que ocorre em pesquisas voltadas ao combate de patógenos não é a extração de benefícios dos recursos genéticos da biodiversidade. Ao contrário, a biodiversidade nesse caso é o alvo a ser combatido e não a fonte de riqueza. Logo, com base em uma interpretação finalística da lei de acesso e da própria CDB, uma pesquisa realizada nesse contexto não está em seu âmbito de incidência, já que não tem por finalidade a obtenção de um benefício com a biodiversidade nem tem qualquer relação com a sua valorização ou conservação.
Não se ignora que as pesquisas com Sars-Cov-2 podem gerar produtos valorosos, como vacinas ou medicamentos antivirais, ou que interesses econômicos motivam a realização dessas pesquisas, as quais podem gerar receitas importantes para as entidades que as conduzirem com êxito. A questão aqui é que o benefício neste caso não decorre da biodiversidade em si. Na verdade, ela é o mal ser combatido, não a riqueza a ser preservada. Afinal, ninguém pretende conservar o Sars-Cov-2 ou valorizá-lo, e sim eliminá-lo.
Por todas essas razões, entendemos que a Lei de acesso à biodiversidade não se aplica às pesquisas voltadas ao combate do Sars-Cov-2. Como o assunto é polêmico e gera debates no Brasil e no exterior, é desejável que o CGen se manifeste para dar aos nossos pesquisadores conforto para realização de seus trabalhos, ou para compartilhar materiais com seus pares no exterior, como já fez em outros casos.
*João Emmanuel Cordeiro Lima e Anita Pissolito Campos são sócios do Nascimento e Mourão Sociedade de Advogados