Por Igor Mauler Santiago
Artigo publicado originalmente na ConJur
Dispõe o artigo 44, inciso IV, da Lei 4.506/64 que as subvenções correntes (de custeio) recebidas de pessoas jurídicas de direito público integram a receita bruta operacional do contribuinte, sujeitando-se ao IRPJ e à CSLL. Por outro lado, prevê o artigo 38, parágrafo 2º, do Decreto-lei 1.598/77 que “as subvenções para investimento, inclusive mediante isenção ou redução de impostos, concedidas como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos”, não integram o lucro real, desde que atendidas certas condições, basicamente voltadas a impedir a sua apropriação pelos sócios.
A Lei 12.973/2014 repetiu a regra, procedendo a alterações na forma de registro da subvenção. A matéria sempre ensejou disputas entre a Receita Federal e os contribuintes, especialmente quanto à qualificação — como subvenções de custeio (tributáveis) ou para investimento (não tributáveis) — de incentivos concedidos pelos Estados em matéria de ICMS. A solução dos litígios dependia da análise caso a caso da legislação estadual concessiva, especialmente no que toca às condições impostas para o recebimento do favor.
À vista desses conflitos, o Congresso Nacional, por meio da Lei Complementar 160/2017, inseriu no artigo 30 da Lei 12.973/2014 um parágrafo 4º, segundo o qual os incentivos e benefícios fiscais ou financeiro-fiscais relativos ao ICMS “são considerados subvenções para investimento, vedada a exigência de outros requisitos ou condições não previstos neste artigo”, e um parágrafo 5º prevendo a aplicação da regra inclusive aos processos administrativos e judiciais ainda não encerrados. A lei complementar (artigo 10) estendeu ainda esse regime aos incentivos e benefícios preexistentes instituídos sem autorização do Confaz, desde que registrados e depositados na forma do seu artigo 3º. O parecer do relator do projeto de lei na Câmara, deputado Alexandre Baldy, revela o amplo alcance que se pretendia dar aos dispositivos e evidencia a única condição que se impunha para a qualificação do benefício como subvenção para investimento:
“Além disso, acolhemos ideia do nobre Deputado Luiz Carlos Hauly e incluímos artigos que deixam claro que os incentivos e benefícios fiscais de ICMS recebidos pelas pessoas jurídicas, desde que esses valores sejam mantidos em conta de reserva no Patrimônio Líquido, são subvenções para investimento, sobre eles não incidindo, por consequência, IRPJ e CSLL. Impede-se, com isso, que a Secretaria da Receita Federal do Brasil continue a autuar as empresas beneficiárias de incentivos do ICMS com base em interpretações jurídicas equivocadas, reforçando a segurança jurídica e garantindo a viabilidade econômica dos empreendimentos realizados” (grifo do autor).
Compartilhando dessa interpretação, mas não do entusiasmo com a medida, o presidente Michel Temer vetou os dispositivos, afirmando que “causa(ri)am distorções tributárias, ao equiparar as subvenções meramente para custeio às para investimento, desfigurando seu intento inicial, de elevar o investimento econômico, além de representar significativo impacto na arrecadação tributária federal”.
No entanto, os vetos foram derrubados pelo Congresso Nacional, tendo os comandos sido promulgados três meses e meio após a publicação da lei. Vale conferir a manifestação do deputado Luiz Carlos Hauly na sessão conjunta que apreciou dos vetos:
“O que não pode é a Receita Federal do Brasil, da noite para o dia, alterar o que a lei determina. Mas foi isso que ela fez nos últimos dois anos. A lei determinava a não incidência de tributo entre os entes federados.
A usurpação da Receita Federal, a ganância que ela tem hoje em arrecadar, isso transformou o Brasil num dos maiores detentores de contenciosos no mundo. Sabem de quanto é hoje o contencioso na Justiça Federal nos Estados e nos Conselhos de Contribuintes? É de dois trilhões. E a maioria dos contenciosos são indevidos. Trata-se de ganância. Acha-se que se pode tributar tudo a qualquer preço, de forma desmedida.
Srs. Senadores, Srs. Deputados, que representam os seus Estados, não é lícito uma empresa receber 10 milhões de incentivo fiscal de um Estado X e a Receita Federal querer cobrar Imposto de Renda, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, PIS, COFINS, e ainda estabelece multa de 75%. Ela recebeu 10 milhões, e está devendo 112 milhões (sic). Ora, o que vai acontecer com o Brasil?
O Brasil está numa grande crise, mas começou a sair dela. Esses autos de infração da Receita Federal são um escárnio à legislação, são uma afronta à Federação brasileira, são indevidos e injustos, pois destroem a indústria brasileira, destroem os negócios do País. Não podem a Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional induzir o Presidente da República ao erro do veto!”.
Após a entrada em vigor das regras, a Receita Federal — compartilhando da interpretação que todos lhes davam — publicou a Solução de Consulta Cosit 11/2020, dispondo que “a partir do advento da Lei Complementar nº 160, de 2017, consideram-se como subvenções para investimento os incentivos e os benefícios fiscais ou financeiro-fiscais relativos ao ICMS concedidos por Estados e Distrito Federal” — quaisquer incentivos e benefícios, insista-se (item 23 da consulta).
Porém, em dezembro último, a Solução de Consulta Cosit 145/2020 alterou essa posição, consignando que, a partir da Lei Complementar 160/2017, os benefícios e incentivos de ICMS serão excluídos do lucro real “desde que observados os requisitos e as condições impostos pelo artigo 30 da Lei nº 12.973, de 2014, dentre os quais, a necessidade de que tenham sido concedidos como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos”. O raciocínio é o seguinte: o parágrafo 4º inserido no artigo 30 pela lei complementar veda a exigência de outros requisitos ou condições além dos previstos no próprio artigo 30, o que não afastaria — mas até reforçaria — aqueles constantes do caput, entre os quais a destinação à implantação ou à expansão da empresa beneficiária (itens 28 e 29 da consulta).
Em suma, a Receita volta a sustentar a necessidade de análise individualizada dos incentivos estaduais para a sua qualificação como subvenções de custeio ou para investimento. A nova orientação do Fisco não se sustenta, pelas razões a seguir:
a) Primeiro porque contraria a literalidade do artigo 30, parágrafo 4º, da Lei 12.973/2014, segundo o qual os incentivos e benefícios relativos ao ICMS “são considerados subvenções para investimento”.A vedação da exigência de outros requisitos não pode ser tomada como reafirmação daqueles constantes de outras partes do dispositivo, dadas as notórias limitações da interpretação a contrario sensu;
b) Segundo porque volta exatamente ao mesmo cenário existente antes da Lei Complementar 160/2017, relegando à total inutilidade o seu artigo 10 e os parágrafos 4º e 5º, que inseriu no artigo 30 da Lei 12.973/2014. E constitui princípio basilar da hermenêutica que a lei não contém palavras inúteis;
c) Terceiro porque contraria o histórico legislativo dos dispositivos que diz analisar, como fica claro da compreensão uníssona que lhes deram o relator do projeto de lei na Câmara, o presidente Temer ao vetá-los e os Congresso ao derrubar os vetos: equiparação — necessária para os legisladores, indevida para o presidente da República — das subvenções de custeio às para investimento e impacto na arrecadação federal (que a nova consulta neutraliza completamente);
d) E quarto porque o STJ veda a tributação de toda subvenção de ICMS — de custeio ou para investimento — com base em fundamento alheio à interpretação da Lei 12.973/2014 e da Lei Complementar 160/2017 (o princípio federativo, que veda a um ente recuperar por meio de tributos benefícios e incentivos outorgados por outro), de sorte que a sua conclusão se mantém qualquer que seja a leitura correta desses diplomas (1ª Seção, EREsp. 1.517.492/PR, relatora ministra Regina Helena Costa, DJe 01.02.2018).
A insurgência da Receita contra a disposição clara da lei não há de ter vida longa.
Igor Mauler Santiago é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.