Por Janaina Môcho*
Artigo publicado originalmente no Estadão
Até que ponto a máxima “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” deve ser respeitada? Até que ponto uma briga entre um casal deve ou não sofrer intervenção? Apesar de tamanha fragilidade no assunto, não é possível ficarmos alheios ao que ocorre, quase que diariamente, em nosso país dentro das residências e dos condomínios.
O Projeto de Lei 2510/2020 pretende alterar a Lei nº 4.591/1964, que “dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias, o Código Civil e o Código Penal, para estabelecer o dever de condôminos, locatários, possuidores e síndicos de informarem às autoridades competentes os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de que tenham conhecimento no âmbito do condomínio, e para aumentar a pena do crime de omissão de socorro, quando se tratar de mulher em situação de violência doméstica ou familiar. Tal Projeto de Lei (PL) tem uma relevância social imensurável e faz com que os indivíduos saiam da posição de espectadores para uma posição de dever de ação e proteção.
O PL traz uma faceta multidisciplinar, envolvendo as áreas cível, de família e penal. Não poderia ser diferente, com base na premissa de que o lugar mais perigoso do mundo para uma mulher é a sua própria casa, conforme informações colhidas no Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O levantamento foi feito a partir de entrevistas de mais de duas mil mulheres sobre situações vividas no ano de 2018.
De autoria do senador Luiz do Carmo (MDB-GO), o PL surgiu com o objetivo de obrigar moradores e síndicos de condomínios a denunciar casos de violência doméstica (ocorridos em áreas comuns ou privativas) às autoridades competentes. Além do PL acima mencionado, em meio à pandemia do COVID-19, mais leis e projetos surgiram para proteger direitos anteriormente não tutelados, ou carentes de expansão interpretativa.
No Rio de Janeiro, por exemplo, a Lei Estadual 9.014/20 passou a instituir que os síndicos e os administradores de condomínios, assim que comunicados, devem encaminhar à polícia ocorrências ou indícios de casos de violência doméstica e familiar durante o período de isolamento social. Num contexto mais amplo, a Lei 9014/20 trata não só sobre violência contra a mulher mas inclui também violência familiar contra crianças, adolescentes, pessoas com deficiência ou pessoas idosas (art. 1º).
Combinando às legislações acima foi recentemente sancionada a Lei 8.967/20, que dispõe sobre a afixação de cartazes nos condomínios edilícios, residenciais, comerciais, conjuntos habitacionais, mistos, associações residenciais, associações de moradores e outras organizações, com informações sobre o atendimento às mulheres em situação de violência durante o período de isolamento social.
Face ao aumento de cerca de 50% de atos de violência doméstica e familiar ocorridos durante o período de isolamento social, o combate à violência doméstica contra mulher e os demais sujeitos vulneráveis elencados acima, precisam estar diuturnamente em nosso radar.
A nosso sentir, de maneira menos clara e enfática com relação à violência doméstica, o Código Civil Brasileiro já previa em seu artigo 1.336 os deveres dos condôminos para a convivência pacífica em uma unidade condominial, ressaltando em seu inciso IV que é dever do condômino:
IV – Dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.
Por analogia pode-se concluir que, apesar de ser um tema delicado, o condomínio já poderia, através do seu síndico e com base no Código Civil, buscar o bem comum e tomar providências em situações que ultrapassem a esfera dos bons costumes. Da mesma forma, a violência doméstica vai em desalinho ao sossego, salubridade e segurança mencionados no inciso supracitado, o que legitimaria o síndico a uma atuação direta para conter situações desta natureza.
Fica evidente que já havia um respaldo na lei, ainda que tímido e sem maiores repercussões, para que o síndico punisse brigas em unidades autônomas que extrapolassem o aceitável e abalassem o sossego dos demais condôminos, terceiros na relação.
Em sintonia com o dito acima, a Constituição Federal de 1988, refletindo a nova realidade, dedica seus artigos 227 a 230 à tutela das pessoas portadoras de vulnerabilidade, consignando-lhes proteção especial em razão de déficit psicofísico causado por algum tipo de fragilidade. Por isso, a criança, o adolescente, o jovem, o deficiente físico e o idoso recebem tutela diferenciada, com referências específicas à sua dignidade, reforçando, ainda mais, o valor dos direitos fundamentais previstos para a pessoa humana de maneira geral (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Instrumentos para a proteção dos filhos frente aos próprios pais. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 7, n. 3, 2018).
Ainda que a situação narrada seja decorrente de questões da vida privada e de delicada intervenção, é preciso punir conforme previsto no art. 1.348 do Código Civil, sob pena do síndico estar descumprindo uma de suas obrigações, já que é de sua responsabilidade impor as regras condominiais, e, em caso extremo, se a multa não surtir efeito, e dependendo das consequências da discussão, aplicar a punição por conduta antissocial.
Com a realidade da pandemia, hoje a proteção contra violência doméstica, como cláusula geral que é, traz para a esfera pública um problema que até há pouco era próprio da “invisível” vida privada. A lei cada vez mais garante proteção das vítimas dessa violência, atribuindo a novos agentes — neste caso os síndicos — deveres e responsabilidades. E isso se faz necessário até mesmo para a sobrevivência do modelo democrático, pois como podemos seguir falando de direitos humanos e afins, quando esses são lesados cotidianamente dentro de casa, em face, em especial, das mulheres e crianças?
Entende-se, portanto, que como a mulher, as crianças, adolescentes, pessoas com deficiência ou pessoas idosas não estão em condições de se protegerem por si só, em regra, e o Estado-Juiz, mais uma vez, toma para si o encargo de tutelá-los em face de todos. A partir de então, portanto, com a previsão legal atual, em briga de marido e mulher, todos podem, e devem, meter a colher.
*Janaina Môcho, sócia e coordenadora do Setor de Direito Imobiliário do Fragata e Antunes Advogados. É, também, pesquisadora da FGV-RJ