Opinião

Cenário da recuperação judicial ficou pior

Depois de anos de tramitação, lei mexeu onde não devia

5 de abril de 2021

Por Eduardo Diamantino*

Artigo publicado no Valor Econômico

Com a publicação da Lei nº 14.112, está feita a atualização nas recuperações judiciais e falências, até então disciplinada pela Lei nº 11.101, de 2005. As alterações foram variadas em inúmeros pontos. É preciso registrar também as que não ocorreram – ou seja, aquelas que eram pleiteadas e foram vetadas ou não integraram o texto final. É necessário analisar alguns pontos das alterações da matéria tributária que impactarão o instituto de forma negativa.

Resumidamente, é possível dizer que depois de anos de tramitação o projeto mexeu onde não devia, deixou de alterar o que era necessário e não bebeu na jurisprudência sobre o tema. Em vez de consolidar e incorporar as construções desenvolvidas pelo Judiciário, inovou a favor do Fisco. Custe o que custar.

Ao valorizar o crédito tributário sobre os demais créditos e agentes do processo, contrariou-se a função social da empresa, a preservação da atividade econômica e a geração de empregos. Mais uma vez vamos ter de nos socorrer do Judiciário para acertar os comandos do legislador.

O foco em questão é apenas o dos créditos tributários já constituídos e da necessidade da Certidão Negativa de Débitos (CND). Na lei anterior, a CND era requerida durante todo o processo, isto é, durante a fase inicial, a recuperação (para efeito de contratação com o Poder Público) e na fase final de homologação e finalização do processo. Referida exigência foi sendo relativizada pela jurisprudência com o passar do tempo. Isso era positivo.

Todos que militam na área sabem quão difícil é estar em dia com as obrigações fiscais em momentos de crise. Na hora da falta de dinheiro em caixa, muitos empresários atrasam o Fisco para honrar salários. Não é o ideal, mas o possível naquele momento. Quando as coisas não melhoram acaba se requerendo a recuperação judicial. Nessa fase inicial quase sempre a empresa deve tributos. Por isso, essa exigência inicial era relativizada. Ficou mantida.

Depois, no curso do processo, ainda que sem a CND, por diversas vezes o Judiciário entendeu que se podia manter as contratações com o Poder Público, justamente no intuito de preservar a atividade empresarial. Isto é garantir a atividade econômica e a geração de empregos significa não sufocar a empresa. Empresas que contratam exclusivamente com o Poder Público têm direito a requerer a recuperação.

Na nova lei, o Fisco foi privilegiado. O artigo 52 teve, no inciso II, a menção ao parágrafo 3º do artigo 195 da Constituição Federal, que impede que devedores da Previdência contratem com o Poder Público. Ou seja, impede que inúmeras empresas como construtoras e prestadoras de serviço público tenham acesso à lei por débitos muitas vezes questionáveis.

Ao final, a exigência do referido documento para homologação do plano foi inúmeras vezes dispensada em face da impossibilidade de se arcar com pagamentos ou parcelamentos que coubessem no orçamento da empresa. O parcelamento até então vigente era tímido e pouco favorável ante os parcelamentos excepcionais ofertados pela União nas décadas passadas.

Na mesma linha, o artigo 57 foi integralmente mantido e continua exigindo a CND para a continuidade do processo após a assembleia de credores. Manteve-se o problema. O que atrapalha aqui é que na busca da CND o recuperando deveria ter uma opção vantajosa de parcelamento.

Não faz sentido obter um desconto substancial das dívidas em geral, prazos enormes para pagar e tratar o crédito tributário de maneira distinta. Mas foi isso que ocorreu. Os parcelamentos previstos continuam pouco atrativos em comparação ao que se oferece às empresas brasileiras.

Nos últimos 20 anos, tivemos parcelamentos vinculados a faturamento, que permitiam o uso de prejuízo fiscal e várias outras benesses. Os prazos, que geralmente eram de 180 meses, ficaram aqui restritos a 84 meses. Não se pode esquecer que o parcelamento ordinário, a que todos os contribuintes têm direito, é de 60 meses.

Será que 24 meses é tempo suficiente para contribuintes em situação especial? Óbvio que não. Pior ainda: uma vez não cumpridos podem ensejar o pedido de falência por parte do Fisco! Algo extremamente arriscado e temerário.

É preciso lembrar, ainda, que embora o Fisco tenha o poder de pedir a falência nesses casos, como disposto no artigo 73, inciso V, os créditos dele não são os primeiros na ordem de preferência, estando em terceiro lugar, depois dos trabalhistas e dos com garantia.

Diante disso, forçoso concluir que as vantagens concedidas ao Fisco estão fundamentadas na ideia de que a recuperação judicial é privilégio que deve ser restrito. Fantasiam que alguém caminha para um processo desses por mero deleite. Desconhecem a função social da empresa e a necessidade de manutenção de empregos. Na forma como ficou disposto afastará inúmeras empresas do instituto. A falência será mais comum.

Resta agora o recurso ao Judiciário. Na lei anterior foi ele quem corrigiu a sua aplicação. Perdemos a oportunidade de incorporar os ensinamentos no novo texto legal. Vamos ficar atentos ao que vem pela frente.

*Eduardo Diamantino é vice-presidente da Academia Brasileira de Direito Tributário e sócio da Diamantino Advogados Associados

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