Por Igor Mauler Santiago e Conrado Almeida Corrêa Gontijo*
Artigo publicado originalmente na ConJur
Reza a Constituição que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (artigo 5º, inciso LVI). O artigo 157, caput, do Código de Processo Penal define-as como aquelas “obtidas em violação a normas constitucionais ou legais” e determina o tratamento a ser-lhes dado: desentranhamento dos autos. Essa “expressiva conquista (e preservação) dos direitos daqueles que sofrem a ação persecutória do Estado”, no dizer do grande decano Celso de Mello1, tem um histórico bem mais acidentado e um presente bem menos luminoso do que à primeira vista pode parecer.
De fato, durante muito tempo se admitiu entre nós a prova ilícita, predicando-se apenas a punição do responsável pelo vício constatado na sua coleta2, tendência que o Tribunal de Justiça de São Paulo só inverteu pouco antes da década de 19703. Assim também ocorreu nos EUA, berço da exclusionary rule, proclamada pela Suprema Corte somente em 1885, no caso Boyd v. United States. No caso Silversthorne Lumber Co. Inv. v. United States, de 1920, a Corte foi além para proscrever também as provas produzidas a partir de informações extraídas de provas ilícitas (fruit of the poisonous tree), a menos que (i) possam ser obtidas de fonte independente ou (ii) devam inevitavelmente chegar ao conhecimento do Estado.
Da primeira situação trata o caso Nix v. Williams (Williams II), de 1984. Após repelir o uso de impressões digitais colhidas quando da prisão ilegal do acusado, a Suprema Corte validou o uso daqueloutras que constavam do banco de dados do FBI desde antes da detenção irregular. Em hipóteses assim, onde não há nexo de causalidade entre a prova ilícita e a lícita, a supressão daquela não prejudica a subsistência ou a validade desta, que pode ser valorada no processo. Na mesma linha foi o caso Murray v. United States, de 1988. Após busca lícita em veículos, nos quais encontrou drogas, a polícia ingressou sem mandado na casa de onde eles haviam saído. Mais tarde, sem aludir à invasão, requereu e obteve ordem judicial para a busca domiciliar, da qual resultou a obtenção das provas contestadas, que vieram a ser mantidas pela Suprema Corte.
Em ambos os casos, o conhecimento da prova ilícita foi irrelevante para que o Estado demonstrasse a ocorrência do crime. No primeiro, as impressões digitais do suspeito já estavam em seu poder; no outro, o pedido de busca e apreensão não decorreu da ciência de que havia drogas na casa, mas da constatação de que estas eram transportadas pelos veículos que dela saíram.
Da segunda situação (descoberta inevitável) cuida o caso Nix v. United States, de 1984. Enquanto mais de duzentos policiais buscavam o corpo de uma criança no terreno onde veio a ser encontrado, o assassino, em conversa informal com agentes e desacompanhado de advogado, revelou o local onde o enterrara. Uma vez que as buscas estavam em curso no lugar certo e haviam sido iniciadas antes da confissão do assassino, entendeu-se que, mesmo à falta desta, o corpo seria inevitavelmente localizado.
Voltando ao Brasil, o parágrafo 1º do artigo 157 do CPP dispõe que “são também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras”. A falta de técnica é evidente, pois na matriz americana e também na pura lógica, falta de nexo de causalidade e acessibilidade por fonte independente são a mesma coisa. Como revela o parágrafo 2º do mesmo artigo (“considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova”), o que a lei brasileira chama de fonte independente é a descoberta inevitável, à qual confere tratamento muito mais frouxo do que o prevalecente nos EUA e o exigido pela nossa Constituição.
Com efeito, como alerta com precisão Nereu José Giacomolli, a inevitabilidade da descoberta deve ser demonstrada a partir dos fatos concretos descritos nos autos – como ocorreu no precedente americano. “Quando se começa a dizer ‘podia, se fizesse’, não há base concreta e demonstrável, e a prova vai saindo do leito da licitude, derivando para vias secundárias e obscuras”4. Da forma como redigida, aduz Antônio Scarance Fernandes, a regra “possibilita (…) a admissão de prova derivada, simplesmente porque seria atingida hipoteticamente por forma lícita de investigação, embora ela tenha sido realmente alcançada a partir de uma prova ilícita”5. Também Antônio Magalhães Gomes Filho censura o CPP por dar “a entender que basta simples possibilidade de que a prova venha a ser obtida por meio lícito para afastar a sua contaminação pela ilegalidade inicial”, o que “subverte o espírito da garantia constitucional do artigo 5º, inciso LVI”6 — opinião de que comunga Ada Pellegrini Grinover7.
Essas preocupações — que distam de ser apenas acadêmicas, face às inúmeras decisões da justiça criminal que na prática negam a garantia da inadmissibilidade das provas ilícitas — agora merecem a atenção também dos tributaristas. De fato, no Acórdão 9303-008.694, a Câmara Superior de Recursos Fiscais confirmou autuação lastreada em provas cuja obtenção sem recurso àquelas anuladas, embora possível (quase tudo neste mundo o é!), era tudo menos inevitável.
A dependência entre os elementos considerados pela Receita Federal para a autuação e as escutas telefônicas posteriormente anuladas pelo STJ é atestada de forma límpida pelo Ministério Público Federal: “Sem as provas conseguidas através da interceptação, não seria possível a obtenção dos mandados de busca e apreensão; sem as provas carreadas aos autos em cumprimento destes, não seria possível a apreensão, para dizer o mínimo, de centenas de milhares de notas fiscais/computadores contendo os verdadeiros preços das mercadorias; sem a análise destes pela Receita Federal em conjunto com os inúmeros e-mails interceptados, os laudos que acompanham a denúncia não teriam sido produzidos. Insistindo: a pretendida separação é impossível.”
Em suma, a Receita só pôde autuar o contribuinte porque teve acesso a provas obtidas ilegalmente. A própria abertura da fiscalização deveu-se à provocação das autoridades de persecução penal. Apesar disso, interpretando literalmente o artigo 157 do CPP (em leitura que se choca com a Constituição, como visto), a CSRF decidiu que a simples “possibilidade de que as provas fossem obtidas por fontes independentes”, decorrente das prerrogativas especiais de que gozam os fiscais de tributos (acesso a documentos sigilosos sem necessidade de ordem judicial, p.ex.), bastaria para autorizar o seu aproveitamento.
Entretanto, o raciocínio é calcado em especulações: não há nos autos nenhum dado a indicar que o Fisco nutrisse suspeitas contra a empresa autuada. Nada sugere, pois, que exerceria as suas prerrogativas especiais justamente em face dela, sobretudo considerando-se que só uma diminuta parcela dos contribuintes é efetivamente auditada. Tudo o que se diz, na esteira da aguda censura de Nereu José Giacomolli acima citada, é que encontraria as provas, se por acaso a fiscalizasse.
Afastado, em prol de uma abstrata possibilidade, o ônus de demonstração factual e casuística da efetiva probabilidade — ou, mais do que isso, da inevitabilidade pura e simples — de obtenção da prova por meios independentes, o que restará, na dicção mordaz de Lenio Streck, será o uso da lei para a lavagem de provas ilícitas, em inaceitável drible à vedação constitucional.
1 STF, 2ª Turma, Ag. Reg. no HC 129.646/SP, Relator Ministro Celso de Mello, DJe 07.10.2020.
2 Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho. As Nulidades no Processo Penal. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 161.
3 Antonio Magalhães Gomes Filho, Alberto Zacharias Toron e Gustavo Henrique Badaró. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 409.
4 O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014, p. 170-171.
5 Processo Penal Constitucional. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 95-96. Na mesma linha: Gustavo Badaró. Processo penal. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 413-414.
6 Provas. In: Maria Thereza Rocha de Assis Moura (Org.). As reformas no processo penal: As novas Leis de 2008 e os Projetos de Reforma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 269-270.
7 Ada Pellegrini Grinover. Antônio Magalhães Gomes Filho e Antônio Scarance Fernandes. As Nulidades no Processo Penal. 11 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 133-134.
Igor Mauler Santiagoé sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
Conrado Almeida Corrêa Gontijo é sócio fundador do Corrêa Gontijo Sociedade de Advogados, doutor e mestre pela USP, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela FGV e pela Universidad Castilla-la-Mancha.
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