Por Mariana Barros*
Artigo publicado originalmente no Estadão
Em sessão realizada em 12 de agosto de 2020, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) fixou o entendimento, ao julgar o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) de tema 12, que “a demora excessiva na prestação dos serviços bancários presenciais em prazo superior aos definidos em legislação específica origina dano moral passível de reparação”. Trata-se, portanto, conforme decisão do referido colegiado, de lesão à honra e à moral in re ipsa, prescindíveis provas incontroversas da suposta lesão suportada pelo consumidor.
Comumente utilizados nos sistemas jurídicos corporalizados no common law, as técnicas de superação de precedentes foram internalizadas pelo ordenamento jurídico pátrio com o advento do novo Código de Processo Civil e perfazem, hoje, nos institutos da Distinção (Distinguishing) e Superação (Overruling). Para fins de aplicabilidade, consideram-se julgamentos de casos repetitivos aqueles proferidos, dentre outros, em incidente de resolução de demandas repetitivas, ciência expressa do art. 928, inciso I, do atual Código de Processo Civil (CPC).
Citando Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, jurisconsulto contemporâneo e componente da Comissão de Juristas a quem foi delegada a elaboração do anteprojeto que resultou no CPC, este diploma legal prestigiou, no que lhe competia, a uniformização da jurisprudência, com fulcro na efetivação dos princípios constitucionais de isonomia e segurança jurídica.
O referido IRDR sucedeu uma ação ajuizada por uma pessoa que, por duas oportunidades sofreu atrasos superiores a 60 minutos no atendimento físico prestado por uma instituição bancária. Entendeu o desembargador-relator que “[…] por se tratar de dano presumido e decorrente de uma relação de consumo na qual a pessoalidade do consumidor não é um fator distintivo, a sua mensuração deve se pautar pela estipulação de um valor padrão, o qual, no entanto, será passível de variação para maior ou para menor havendo, no caso concreto, motivos que a justifique”. O quantum foi fixado em R$5.000,00. O tempo de espera altamente excepcional e repetido, e que certamente não ocorre com frequência, impressiona e ajuda a levar à generalização da decisão.
Há consenso doutrinário e jurisprudencial quanto à natureza, conceituação e fato gerador do dever de indenizar (sendo o dano moral, grosso modo, a violação a um bem juridicamente protegido, ressalvados os casos em que a lesão infere a ordem patrimonial do ofendido), normatizado pelo art. 186 do CC e art. 6º, incisos VI e VII do Código de Defesa do Consumidor.
O entendimento dissonante se dá quando da aplicação da teoria à prática. Ante a ausência de critérios objetivos para a materialização dos danos morais, cada juízo a arbitra e fixa o valor indenizatório ao bel-prazer.
Banalizado pelo excesso de demandas e condenações, o instituto dos danos morais se definha na normalização das denominadas aventuras jurídicas nos Juizados Especiais ou em ações com gratuidade de justiça, não havendo ônus à parte vencida em caso de improcedência dos pedidos iniciais. Raros os órgãos jurisdicionais que coíbem improbidades processuais, com a consequente aplicação da multa prevista no art. 81 do CPC/15, sob os fundamentos do art. 80, incisos IV, V do mesmo texto legal, multa essa, se reconheça, dificilmente será cobrada.
Não se mostra, portanto, descabida a comparação entre o instituto dos danos morais e a “batatinha frita” nos combos das maiores redes de fast food do país. Assim como esse quitute, a reparação por eventual lesão à honra não figura como pleito principal nas ações distribuídas, mas sempre consta nos pedidos finais.
Regressando ao caso em análise, cumpre mencionar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) não comunga do entendimento firmado pelo IRDR proferido pelo TJGO. Em recente acórdão, prolatado em meados de 2019 (REsp 1.647.452 – Relator: Min Luis Felipe Salomão), por unanimidade, reconheceu a referida Corte que a longa espera em filas de bancos mostra-se irregularidade administrativa, comum na relação entre a instituição e o cliente. Não passa, portanto, de mero dissabor ou infortúnio do cotidiano inerente a qualquer cidadão que se submete à espera em diversos prestadores de serviços.
O Procon-MG, seção administrativa do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, no Informe Jurídico elaborado em 15/10/2019, estabeleceu que “a espera em fila de banco, supermercado, farmácia e em repartições públicas, dentre outros setores, em regra, é mero desconforto que não tem o condão de afetar direito da personalidade”, em adesão ao acórdão supra.
Ainda, entende o STJ que o dano precisa ser demonstrado e comprovado para que gere o dever de indenizar em situações de espera para atendimento em agências bancárias. Ou seja, a simples alegação de uma espera longa em fila, com o descumprimento de leis municipais, não é ensejadora in re ipsa da pretensão indenizatória.
Aliás, cumpre mencionar que a jurisprudência do STJ é categórica ao asseverar que “[…] os aborrecimentos comuns do dia a dia, os meros dissabores normais e próprios do convívio social, não são suficientes para originar danos morais indenizáveis” (REsp: 1.399.931 – MG. Relator: Min. Sidnei Beneti. DJe: 06/03/2014).
Interpretação diversa premiaria a banalização do dano moral e o reconhecimento de pretensões individualizadas sem fundamento legal, na medida em que situações adversas fazem parte do cotidiano de qualquer cidadão e não devem ser utilizadas como fundamento para enriquecimento sem causa.
Dado o cenário pandêmico e a projeção pós–pandêmica de cuidados e restrições, a fim de minimizar aglomerações e conter o contágio provocado pelo novo coronavírus, as agências bancárias e financeiras deverão se reestruturar, com restrição de horários e limitação de pessoas no interior das mesmas.
Por consequência, haverá uma alteração no tempo de atendimento e prazo de espera nas dependências bancárias, confrontando com o entendimento estabelecido pelo IRDR tema 12, acima exposto.
Remanesce, todavia, um questionamento ainda sem resposta: devem as instituições bancárias manter as restrições e orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e das autoridades regionais para a prevenção da COVID-19, ou colocar em prática o entendimento lavrado pelo TJGO, mantendo um atendimento presencial mais célere e sem tanta atenção às medidas sanitárias?
*Mariana Barros, especialista em Direito das Relações de Consumo, sócia do Fragata e Antunes Advogados