Por Antonio Carlos Aguiar e Saulo Stefanone Alle*
Artigo publicado originalmente no Estadão
Restaurar o ambiente do planeta Terra é o objetivo em que se envolve o robozinho Wall-E, na animação vencedora do Oscar, da Pixar. No primeiro plano, o problema evidente é o ecológico, que empurrou a humanidade para uma vida mediada pela tecnologia, em uma nave espacial segura e cheia de confortos.
Analogamente, a pandemia nos empurrou para dentro da “nave caseira” de cada um, transformando o então espaço físico, fixo e estável, que era nossa residência, em lugar multifuncional, instável, compartilhado e criativo. De um momento para outro, ele foi pivotado. Teve de ser forçosamente adaptado às novas necessidades. Passou a ser um local mutante no qual seus integrantes (ou tripulantes) viajam dentro dele mesmo o tempo todo. Um local conceituado pelo viés da ubiquidade espacial, que aloja a um só tempo dentro de si várias estações, com muitos elementos/estabelecimentos, que antes e diferentemente, eram distribuídos no Planeta, mas, que, agora, de modo coercitivo e temporário, restaram interditados pelo vírus, a saber: escola, residência, área de laser, restaurante, espaço pet e estação de trabalho. Tudo, acrescente-se, devidamente “alojado na neve” por meio de improvisações tecnológicas, uma vez que diferentemente da animação da Pixar não houve planejamento antecipado para essa metamorfose ambiental.
Mas, como as melancias da caçamba do caminhão, fomos nos adaptando…
Estamos há quase dois anos nesta condição.
A consequência, evidente, é que, após tanto tempo vivendo em uma “nave espacial-especial” revestidas de algumas comodidades caseiras, por acomodação ou simples desdobramento factual do confinamento, acabamos perdendo alguns instintos humanos de “sobrevivência na selva de pedra”, com a diminuição da capacidade de nos mover pelas próprias pernas, numa espécie de atrofia dos músculos e, de quebra, com a aquisição de um outro acréscimo estrutural: a obesidade.
Será que atingimos ou atingiremos o nível de Axiom, onde os passageiros dependem totalmente dos sistemas automáticos da nave, sofrendo severas perdas de massa óssea e se tornando obesos mórbidos, comandados por um capitão que pouca ou quase nada faz, deixando o controle da Axiom para o piloto automático robótico, Auto?
As pessoas perderam a oportunidade do encontro – perderam um aspecto essencial de sua natureza. Encontro, agora, só virtual ou com o entregador da plataforma de entrega rápida.
Desde março de 2020, grande parte das pessoas permaneceu em suas casas, muitos deles trabalhando solitariamente diante de um computador e se relacionando exclusivamente por ferramentas de videoconferência – a urgência e o medo do desconhecido nos forçou aos mais diversos tipos de atitudes e condicionantes sociais impeditivas do encontro afetuoso e presencial. O mantra uso de máscaras, álcool em gel e distanciamento social (acrescido pela vacinação) não sai de nossas cabeças.
Os relacionamentos pessoais e familiares também tiveram de se acomodar/adaptar neste veículo novo, com limitações de velocidade, som, imagem, mas, sobretudo, incapaz de ser um mediador eficaz da e para a relação humana. As questões objetivas e burocráticas até caminham bem pelas redes, e isso ficou muito claro nesse período, mas, o humano vai além da tela. Gente precisa de calor humano e não só de pixels e velocidade de internet. Isso dá miopia…
As pessoas e suas famílias estiveram – e muitos ainda estão – vivendo dentro da sua Axiom – nave espacial que abriga a humanidade deslocada pela atuação cruel do vírus, em Wall-E (de maneira menos romântica tecnicamente e mais próxima de uma “gambiarra funcional”) – por mais de um ano. A obesidade (ela de novo…) aumentou, a ansiedade cresceu e a miopia “quase alcançou índices de pandemia”.
E agora, o que acontece (rá) quando passamos a ver uma possibilidade de sair da “nave”? Quando as coisas parecem dar sinais de que a vida na Terra começará ser restaurada…
Há ou haverá resistências?
Seria a economia de tempo e de custos de manutenção dos antigos locais de trabalho em escritórios uma das forças autônomas da Axiom, contra a restauração da vida cotidiana anterior?
Além disso, as pessoas teriam se acomodado à vida na Axiom, perdendo força para deixar a zona de conforto, física e emocionalmente?
A eficiência é uma parte importante do trabalho, todavia, o desenvolvimento humano e a oportunidade para criar e estabelecer relações verdadeiras também são. Por um lado, a intensificação do uso de ferramentas e tecnologias de informação e comunicação, nesse período, é um fator amplamente favorável. A eficiência nas atividades objetivas e burocráticas tende a abrir mais espaço para as atividades humanas, para a criatividade e para os relacionamentos.
Contudo, é preciso desembarcar da Axiom, no momento certo, com segurança e aos poucos.
Desembarcar é preciso.
Vamos atrás de paixões reais, de encontros olho no olho próximos ao corpo e não à tela; vamos atrás de EVA; vamos encontrar uma planta de verdade na superfície do planeta Terra. Esse é o novo, velho e querido normal do país real e não só virtual que havíamos.
Bora descer!
*Antonio Carlos Aguiar, advogado e sócio do Peixoto & Cury Advogados
*Saulo Stefanone Alle, advogado do Peixoto & Cury Advogados