Por Cristiane Costa e Paloma Casanovas*
Artigo publicado originalmente na ConJur
Ainda em novembro de 2020, a prestigiada American Medical Association (AMA) já recomendava a inclusão de presos e funcionários de estabelecimentos prisionais nos grupos prioritários para receberem as primeiras doses das vacinas contra a Covid-19. A dificuldade na adoção de medidas de isolamento social, a falta de assistência médica e o escasso acesso a itens de higiene pessoal pautaram a recomendação [1].
Além da associação americana, diversos especialistas brasileiros em saúde pública continuam endossando a inclusão da população carcerária nos grupos prioritários de imunização, destacando que o alto risco de exposição ao vírus dentro das prisões, além de comprometer as pessoas presas e os funcionários que transitam nesses espaços, também pode afetar as comunidades ao redor dos presídios. Para William Lopez, professor da Universidade de Michigan, a ideia de que as prisões são espécies de fortalezas impenetráveis é ultrapassada, “na realidade essas instalações costumam ter grande movimento de pessoas” [2].
No Brasil, segundo o último relatório disponibilizado pelo Conselho Nacional de Justiça, em 20 de janeiro, já houve 229 mortes em estabelecimentos prisionais por conta da Covid-19, com um índice de aumento de 4,5% em relação ao mês anterior. Ainda em janeiro, o número de casos confirmados chegou à marca de 57.454. Desse total, 43.799 são presos contaminados e cerca de 13 mil correspondem aos trabalhadores dos complexos prisionais [3].
Apesar de alarmantes, os dados divulgados pelo CNJ provavelmente não refletem a realidade sanitária das prisões brasileiras. Segundo a Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz, estima-se que, na população em geral, cada pessoa infectada pela Covid-19 pode contaminar de duas a três pessoas. Já dentro dos presídios esse número é sete vezes maior. Cada pessoa contaminada pode contaminar outras dez: “em uma cela com 150 PPL (pessoas privadas de liberdade), 67% deles estarão infectados ao final de 14 dias, e a totalidade em 21 dias” [4].
Vale ressaltar que a pandemia da Covid-19 agravou uma situação de precariedade sanitária já instalada nas penitenciárias. A superlotação e a falta de assistência adequada à saúde levam à morte de pessoas presas por doenças tratáveis fora do contexto de encarceramento, como a tuberculose, a hanseníase e o HIV [5].
Outro dado devastador diz respeito ao acesso a médicos nas prisões nacionais. Conforme o mapeamento promovido pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), 31% das unidades prisionais no país não fornecem assistência médica interna, exigindo um deslocamento externo quando alguma pessoa presa necessita de atendimento médico.
A ausência de médicos nas unidades também compromete a identificação e tratamento de casos suspeitos da Covid-19 dentro da prisão, dificultando as ações de contenção interna do vírus [6].
A despeito desse quadro, o Ministério da Saúde ainda não indicou nenhuma estratégia clara de vacinação direcionada ao cárcere. Na segunda versão do plano nacional de vacinação, divulgada no último dia 22, a “população privada de liberdade e funcionários do sistema de privação de liberdade” continuam integrando a lista dos “grupos prioritários”, todavia, sem a indicação de como ou quando os imunizantes chegarão aos presídios nacionais [7]. No material, consta apenas que a vacinação será articulada com os Estados e municípios, de acordo com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), sem maiores detalhes.
Ao que tudo indica, o governo federal ignora a necessidade de implementar uma política de contenção à Covid-19 dentro das prisões. Com 733 mil pessoas sob a custódia do Estado, das quais 45,92% pertencem ao regime fechado [8], é urgente a adoção de medidas sanitárias voltadas ao combate do coronavírus dentro do cárcere.
Durante o ano de 2020, a principal medida de contenção à pandemia que se popularizou pelos Estados pautou-se no isolamento absoluto e mal pensado. Saídas temporárias foram suspensas, visitas externas proibidas, ao passo que as denúncias de casos subnotificados e a escassez de itens de proteção e higiene pessoal aumentavam do lado de fora dos muros [9].
No contexto de superlotação que aflige o país, é preciso a adoção de uma política coordenada de combate e prevenção ao Covid-19 dentro das prisões. O governo federal, com o auxílio dos Estados e municípios, tem o dever de assegurar o acesso à saúde para todos os seus administrados, sem distinção.
No âmbito do plano nacional de vacinação, a população carcerária deve ser priorizada por estar inserida em instalações estatais de extrema precariedade. Aliada à vacinação, ações que visem ao aumento da testagem, da alocação de agentes de saúde dentro dos estabelecimentos prisionais em conjunto com a disponibilização suficiente de equipamentos e materiais de proteção são esforços imprescindíveis para contornar o desastre sanitário e humanitário em andamento nos presídios brasileiros.
[1] American Medical Association. Disponível em: <https://www.ama-assn.org/press-center/press-releases/ama-policy-calls-more-covid-19-prevention-congregate-settings>, acesso em 25 jan 2020.
[2] BBC News – Porque especialistas defendem que presos estejam entre grupos prioritários na vacinação contra a covid-19. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55360536#:~:text=Especialistas%20em%20sa%C3%BAde%20p%C3%BAblica%20ressaltam,os%20primeiros%20a%20serem%20imunizados>, acesso em 25 jan. 2020.
[3] Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/01/Monitoramento-Casos-e-%C3%93bitos-Covid-19-20.1.21-Info.pdf>, acesso em 25 jan. 2020
[4] SANCHEZ, Alexandre; SIMAS, Luciana; Diuana, Vilma; Larouze, Bernard. COVID-19 nas prisões: um desafio impossível para a saúde pública? Disponível em <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/41204>, acesso em 25 jan. 2020 e World Health Organization – Regional Office for Europe. Disponível em <https://www.euro.who.int/en/health-topics/health-determinants/prisons-and-health/publications/2020/preparedness,-prevention-and-control-of-covid-19-in-prisons-and-other-places-of-detention,-15-march-2020-produced-by-whoeurope>, acesso em 25 jan. 2020.
[5] Portal UOL. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/14/massacre-silencioso-mortes-por-doencas-trataveis-superam-mortes-violentas-nas-prisoes-brasileiras.htm>, acesso em 27 jan. 2020.
[6] Conselho Nacional do Ministério Público. Disponível em: <https://www.cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/sistema-prisional-em-numeros>, acesso em 25 jan. 2020.
[7] Ministério da Saúde. Disponível em: <http://www.saude.pi.gov.br/uploads/warning_document/file/641/Plano_Nacional_de_Vacina%C3%A7%C3%A3o_Covid19.pdf>, acesso em 25 jan. 2020.
[8] Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen. Disponível em <https://www.euro.who.int/en/health-topics/health-determinants/prisons-and-health/publications/2020/preparedness,-prevention-and-control-of-covid-19-in-prisons-and-other-places-of-detention,-15-march-2020-produced-by-whoeurope>, acesso em 25 jan. 2020.
[9] Portal Universa. “Apavorado”: com o risco da Covid, presos enviam cartas de amor e despedida. Disponível em: <https://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/04/29/apavorado-com-o-risco-da-covid-presos-enviam-cartas-de-amor-e-despedida/>, acesso em 25 jan. 2020.
Cristiane Costa é advogada criminalista no escritório Cavalcanti Sion Salles Advogados.
Paloma Casanovas é advogada e pesquisadora no Centro de Análise Liberdade e Autoritarismo (LAUT).