Por Alessandra Nascimento S. F. Mourão e Pedro Montanher*
Artigo publicado originalmente na ConJur
Como é sabido, o substitutivo ao Projeto de Lei nº 399, de 2015 (!), que dispõe, entre outras coisas, sobre o cultivo, processamento, produção e comercialização de produtos à base de cannabis spp, foi aprovado no dia 8 de junho do ano passado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados.
O ano legislativo começou e, enquanto o substitutivo ao PL 399/2015 aguarda deliberação de recurso pela mesa diretora da Câmara dos Deputados, a vida tem pressa. Assim, a judicialização do tema permanece em progresso.
A 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu, nos autos da Apelação de Reexame Necessário de nº 1034060-68.2021.8.26.0576, manter a sentença de primeiro grau que determinou à vigilância municipal de São José do Rio Preto que se abstenha de “impor qualquer restrição de autorização sanitária ou funcionamento à impetrante e suas filiais, na aquisição, manipulação e/ou dispensação de produtos tratados na RDC327/2019, industrializados ou manipulados com ativos derivados vegetais ou fitofármacos da Cannabis Sativa”.
A decisão tem fundamento na ausência de diferenciação legal entre farmácias com e sem manipulação que imponha à primeira restrição de atividade permitida à segunda. Para o relator do acórdão em análise, a Lei nº 5.991/73, que dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, não faz qualquer diferenciação a respeito das farmácias com e sem manipulação.
Além disso, a Lei nº 13.021/2014, embora faça distinção entre as duas espécies de farmácias, discrimina que o espectro de atividades das farmácias com manipulação é maior do que o das farmácias sem manipulação, inclusive englobando as atividades dessas últimas.
De acordo com o desembargador julgador, não poderia a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), portanto, produzir norma regulamentar como a RDC nº 327/2019, que assim dispõe em seus artigos 15 e 53:
“Artigo 15 — É vedada a manipulação de fórmulas magistrais contendo derivados ou fitofármacos à base de Cannabis spp.
Artigo 53 — Os produtos de Cannabis devem ser dispensados exclusivamente por farmácias sem manipulação ou drogarias, mediante apresentação de prescrição por profissional médico, legalmente habilitado”.
A decisão segue tendência de outros julgados paulistas, conforme as demais Apelação Cível nº 1021711-61.2021.8.26.0114, Apelação Cível nº 1001126-52.2021.8.26.0319, Apelação/Remessa Necessária nº 1003445-03.2021.8.26.0348 e Apelação Cível nº 1013079-49.2020.8.26.0577, além de outros no mesmo sentido.
O comportamento do Judiciário paulista é sintomático da lacuna legislativa sobre o tema do uso medicinal da cannabis.
Se por um lado essas decisões judiciais, ao permitir a manipulação e dispensação de fórmulas magistrais contendo derivados ou fitofármacos à base de cannabis pelas farmácias de manipulação, aumentam o acesso aos pacientes, do lado oposto, vemos que as decisões criam um gradiente de exigibilidade regulatória, com muitas mais exigências e mais custos aos fabricantes de produtos à base de cannabis, sujeitos à RDC 327/2019, emitida pela Anvisa, e ainda impedem um controle de qualidade que é essencial para a segurança desses mesmos pacientes.
O texto que prevalece no substitutivo ao Projeto de Lei nº 399/2015 está com redação madura depois de intensos e exitosos esforços que envolveram todos os representantes dos setores necessários e interessados na elaboração do marco regulatório da cannabis para fins terapêuticos no Brasil.
Consta do artigo 19 do substitutivo ao PL 399/2015 que “as farmácias magistrais poderão manipular e dispensar medicamentos canabinoides, desde que obtenham autorização específica junto ao órgão sanitário federal e que sejam observadas as disposições d[est]a Lei e das normas infralegais correspondentes”.
Essa legislação, se em vigor, resolveria, com rigor técnico, o espaço (dos direitos e obrigações legais) das farmácias de manipulação, dos fabricantes de medicamentos e da Anvisa e demais órgãos de vigilância sanitária, sem que os interessados tivessem de recorrer ao Judiciário, em que uma decisão sob o fundamento da legalidade poderá produzir efeitos técnicos e regulatórios não parametrizados pelo julgador.
Por isso, temos por certo que urge a vigência do marco regulatório da cannabis no Brasil, para que possamos participar, com maior segurança jurídica, do mapa mundial do uso medicinal do produto.
Enquanto isso não acontece, corre-se o risco de que intervenções judiciais desequilibrem exigências e benefícios regulatórios, prejudicando o desenvolvimento sistêmico de todos os setores envolvidos no uso medicinal da cannabis.
Afastar por meio de medidas judiciais a fiscalização e o controle de produtos de uso humano está longe de ser a melhor solução para o paciente. Preferível que nossos legisladores enfrentem a realidade e possam propiciar o acesso a produtos para fins terapêuticos com base em leis e regulamentos realísticos e adequados e que permitam aos órgãos competentes cumprir sua missão.
Alessandra Nascimento S. F. Mourão é sócia fundadora da Nascimento e Mourão Advogados e professora na FGV Direito SP.
Pedro Montanher é sócio da área de Direito Penal Ambiental e Consultivo do escritório Nascimento e Mourão Advogados.