Por Celeste Leite dos Santos*
A vulnerabilidade social e individual tem sido sistematicamente ignorada pelos operadores do Direito, reproduzindo-se padrões de dominação sem que existam avanços efetivos em prol da equidade ou também denominada, justiça social. Suas condições de existência prática, representações, diferenças de gênero, origem e classe social são alheias ao direito posto e, portanto, ao uso da violência legítima, estejam estas ocupando o logos de vítima ou ofensor em determinado processo.
Sequer há consciência humanitária das violências diárias praticadas pelos operadores do Direito contra vítimas, ofensores e os próprios integrantes do sistema de justiça. Vivemos um continuum de violência que se retroalimenta por ausência do estabelecimento de caminhos viáveis e consensuados de fazer justiça. Os benefícios do uso da conferência vítima-ofensor em relação a soluções meramente negociadas, por exemplo, são absurdos. Ao mesmo tempo contempla o resgate da dignidade da vítima violada e a reeducação e ressocialização do ofensor, pela assunção de responsabilidade ativa pelos erros cometidos, negando a infantilização imposta pela fórmula processual em nome de suposta presunção de inocência. Em nome dela processos penais são protelados por anos, os danos causados não são reparados e os índices de violência aumentam exponencialmente sem que ninguém pare para indagar – se há duzentos anos são utilizadas fórmulas processuais como fonte de garantias do cidadão em face do Estado, as razões que motivaram a sua criação ainda se mantém em uma Sociedade do Bem-Estar Social?
As vulnerabilidades socioexistenciais possuem como caminho legítimo de acolhimento pela redução precária processual ou é chegado o tempo de que a gestão intersetorial da justiça, segurança pública, saúde pública e assistência social é caminho irrevogável de aplicação sistemática dos saberes sem que uma Ciência pretenda fazer valer suas teorias e premissas em detrimento da outra?
Não basta que a Vitimologia e a Criminologia desenvolvam extensos tratados de como o sistema de justiça está despreparado para fazer frente a vulnerabilidades, sem que também se aponte formas de enfrentamento a esse modelo dominante. O mito do homem médio e seus arquétipos materiais e simbólicos demonstram que para além de suportar a sua suposta existência e aplicação prática se faz necessário transformar esse caminho, apontando soluções viáveis e empáticas que permitam trabalhar tanto o eixo da vítima e, por conseguinte, seu ciclo de vitimização, formas de apoio e desvitimização, quanto o eixo do ofensor, que passa a adquirir autonomia e poder de decisão sobre o seu futuro e das vítimas, diretas, indiretas e coletivas afetadas pelas suas ações.
O Projeto Avarc (Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos) foi desenhado no seio da Promotoria de Justiça do Fórum Criminal da Barra Funda e logo rompeu as barreiras institucionais para atingir ampla eficácia social na sua interface direta com a sociedade e empoderamento dos indivíduos e comunidades por meio de práticas restaurativas em suas diferentes formas: conferências vítima-ofensor, memorialização (memorial às vítima da Covid-19 no Parque do Carmo), conferências familiares, círculos de cura, círculos de paz, diálogos transformadores do trauma, dentre outras metodologias desenvolvidas pelo projeto que culminaram com a apresentação do Estatuto da Vítima no Congresso Nacional. O PL 3.890/2020 atualmente possui pedido de urgência de deputados de diferentes bancadas que representam 155 votos, porém tem deixado de ser pautado em plenário em razão de decisão política do Presidente da Câmara dos Deputados.
O papel central da vítima no desenvolvimento de políticas públicas que enfrentem as vulnerabilidades individuais e coletivas diante de um fato traumático é algo desafiador e atual. A vulnerabilidade se converteu em categoria científica para analisar diversos fenômenos possuem aportes da psiquiatria, pediatria, Ciências do meio ambiente, economia, nutrição, direito, sociologia, passando a ocupar o lugar que antes era reservado aos marginalizados, inadaptados, pobres e excluídos. Essa transformação perpassou da transformação do capitalismo em um Estado do Bem-Estar Social e, mais recentemente com a pandemia da COVID-19, um Estado que passa a conviver com a existência de uma Sociedade do Bem-Estar Social, já que inapto para solucionar, por si só, todos os problemas de coexistências de seus membros. A ruptura epistemológica apontada traz consigo aspectos antropológicos, relacionais, contextuais, políticos e históricos.
Basta existir para estar exposto a ser ferido (vulnus). A simples dependência inerente a condição humana e sua necessidade do estabelecimento de conexões constituem a forma primária de vulnerabilidade que não possui barreiras ou classes sociais. Ao lado do Direito, amor e solidariedade passam a ser categorias de cuidado individual e coletivo. Os conflitos não podem mais ser resumidos apenas a violência ainda que legítima (Direito), mas necessariamente devem ser adicionadas categorias que impliquem no amor ao próximo e na solidariedade. Por isso são chocantes a manutenção de formas primárias de segregação social como as penas privativas de liberdade, em detrimento de formas consensuais e empáticas de resgate dos indivíduos e comunidade impactados por determinado fato, seja a sua origem criminal, natural (calamidades públicas ou desastres naturais). Não se pretende eliminar por completo essa fórmula, mas traçar caminhos amorosos, de acolhimento, proteção e cuidado. O ser humano antropoceno domina as causas naturais e pode antecipar e prevenir diversas formas pelas quais o ser humano pode ser ferido, entretanto, se faz necessário que exista vontade política de distribuição do poder em parcelas iguais entre os diferentes saberes e esferas de tomada de decisão. Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia deixam de ser adornos a centralidade de decisões heterônomas judiciais que nada solucionam, por serem respostas estatais em regra tardias, desagregadoras e sem componentes que permitam incorporar ao Direito os valores amor e solidariedade.
Com isso avançam os processos de mercantilização do bem-estar social sem que mudanças estruturais necessárias sejam realizadas: o discurso legítimo continua a ser o do colonizador, criminalizando-se ou censurando-se todo aquele que aponte as falhas e ilegitimidades do suposto Estado de Bem-Estar Social em que vivemos. Conquanto todos sejamos humanos e, portanto, vulneráveis, as necessidades de cuidado são distribuídas de forma desigual na sociedade por fatores que vão desde a idade, origem, sexo, orientação sexual, moradia, condições geográficas, dentre outras. A possibilidade de transferência da função de cuidado também é fator relevante ao se analisar, por exemplo, a especial vulnerabilidade da vítima de um delito. Os eixos de opressão e privilégio também variam de acordo com o gênero, raça, sexualidade e outras fatores estigmatizantes que são invocados para negar o acolhimento e estimular o encapsulamento de vítimas que se submetem a uma situação violência física, moral, psicológica, social ou patrimonial – por exemplo, podemos citar o assédio moral que encontra particular local para seu desenvolvimento no setor público, especialmente em razão da ausência de política de paridade de gênero e raça, sendo que as próprias potenciais vítimas contribuem de forma consciente ou inconsciente para a manutenção do status quo.
Em matéria de assédio moral é preciso se ter a consciência de seu caráter estrutural nas organizações sociais, sendo considerado um importante fator de saúde pública, pois somente um servidor saudável poderá desenvolver adequadamente a função precípua que lhe é inerente: servir, cuidar do outro. Em casos desse jaez, a fragilização dos vínculos sociais da vítima é promovida de forma consciente pelo perpetrador, especialmente os vínculos relacionados com a sua atividade laboral, rompendo-se assim a dupla dimensão de proteção do servidor público ou trabalhador: a proteção e reconhecimento construídos ao longo de uma trajetória de vida são rompidos e gradativamente substituído pela desqualificação e um olhar de desaprovação projetado sucessivamente sobre a vítima. Com isso perpetuam-se no poder os padrões colonizadores que mantém a névoa da desigualdade no acesso aos cargos de poder e liderança, a manutenção dos estereótipos de gênero e políticas de inclusão dos povos originários e raciais inexistentes.
Como consequência vivemos paradoxalmente a crise das instituições, já que incapazes de promover a inclusão, distanciam os indivíduos que passam a assumir crescente protagonismo, sem que haja enfrentamento dos problemas sistêmicos apontados. O indivíduo autossuficiente já não necessita eleger suas decisões de acordo com padrões institucionais em vigor e, por conseguinte, responsabilizar-se por suas ações. Isso é legitimado em um sistema que estimula a negação e a infantilização por meio de fórmulas processuais.
A transferência de responsabilidade traz consigo a fragilização de todos os indivíduos, que passam a ser submetidos a uma série de vulnerabilidades não previstas no modelo anterior, produzindo o aumento da vulnerabilidade social de massas, tendo causas múltiplas, como a instabilidade e precariedade laboral, a falta de proteção social, dentre outras. A inexistência de cuidado social mínimo das classes trabalhadoras, públicas e privadas, minam a sua autonomia. A ausência de proteção de natureza material ou simbólica interfere nas demais esferas de relações do indivíduo, tal como familiares e sociais. Sartre (1952: p. 53) já destacava: “O importante não é o que fizeram conosco, senão o que nós fazemos em relação ao que a sociedade tem feito conosco”. Em outras palavras, a sociedade gera vulnerabilidade e condiciona nossas vidas. É a partir do que as pessoas vulnerabilizadas farão em relação a outras pessoas vulneráveis em relação a ela que poderemos aplicar os valores do amor e da solidariedade que com certeza não nos será dado, mas conquistado.
A criação do marco legal do Estatuto da Vítima romperá as barreiras das sucessivas cadeias perpetuadoras da violência em nossa sociedade, rompendo paradigmas e construindo novos caminhos. Porém, é necessário que se supere o discurso e parta-se para a ação prática de cobrança incondicional de seus postulados. É preciso que todos os indivíduos digam: BASTA!
*Celeste Leite dos Santos é promotora de Justiça, mestre (PUC-SP) e doutora (USP), idealizadora do Estatuto da Vítima (PL 3.890/2020), gestora do projeto Avarc, presidente do Instituto Brasileiro de Atenção e Apoio à Vítima (Provítima) e integrante do movimento do MP Democrático.