Por Cecilia Mello, Flávia Silva Pinto Amorim, Júlia Dias Jacintho e Marcella Halah Martins Abboud
Artigo publicado originalmente na ConJur
A busca das mulheres brasileiras por acesso amplo à educação de qualidade, capacitação profissional e eliminação dos obstáculos ao exercício do trabalho remunerado aumenta notadamente a partir do final do século 19. No mesmo contexto, também assume relevância o direito de voto e de elegibilidade, como mecanismo indispensável à conquista desses objetivos.
Embora a proclamação da República (1889) tenha sido um marco da aceleração do processo de conquista dos direitos políticos pelas mulheres, a luta remonta ao ano de 1885, quando a cientista Isabel de Souza Mattos requereu na Justiça seu alistamento eleitoral com base na Lei Saraiva, que permitia a todo brasileiro com título científico o direito de votar. Seu registro eleitoral foi concedido em 1877, porém em pouco tempo foi revogado (1890).
A resistência ao reconhecimento dos direitos das mulheres de forma geral sempre foi imensa e, quanto ao voto, não seria diferente. Foi preciso muito engajamento e empenho para a conquista desse direito fundamental. As propostas em prol do voto feminino foram rejeitadas na Assembleia Constituinte de 1891, criando uma ambiguidade em torno desse direito, no sentido de se estaria — ou não — o elemento feminino incluído na categoria “cidadãos brasileiros”. Nesse cenário controvertido, em 1906 Myrthes de Campos, advogada e primeira mulher a ser aceita na Ordem dos Advogados, e a professora e indigenista Leolinda de Figueiredo Daltro tentaram exercer o direito de voto, mas tiveram os seus pleitos de alistamento indeferidos.
Assim, começaram a surgir associações e instituições em defesa da causa, como é o caso da agremiação Partido Republicano Feminino, criado em 1910 por Leonilda de Figueiredo Daltro com o objetivo de reinstaurar no Congresso o debate sobre o reconhecimento do voto feminino. A resistência era enorme e dois projetos chegaram a ser apresentados, porém sequer foram votados.
Na década de 20, o Brasil vivenciava relevantes acontecimentos, como a Semana de Arte Moderna, o movimento tenentista e a fundação do Partido Comunista do Brasil. Nesse contexto histórico, foi fundada a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher (Leim), movimento que buscava a igualdade política, liderado pelo senador Justo Leite Chermont e coordenado pela professora Maria Lacerda de Moura e a bióloga Bertha Lutz.
É célebre a frase de Bertha Lutz: “Recusar à mulher a igualdade de direitos em virtude do sexo é negar justiça à metade da população”.
Anos depois, a liga foi substituída pela Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF), que objetivava, primordialmente, promover a educação qualificada da mulher, obter garantias para o trabalho feminino e assegurar às mulheres a efetividade e o exercício dos direitos políticos contemplados na Constituição Federal.
A partir de 1927, novas propostas de lei e emendas constitucionais em favor do voto feminino chegam ao Parlamento brasileiro. Bertha Lutz tinha como principal apoiador o senador pelo Rio Grande do Norte Juvenal Lamartine, que, ao assumir o cargo de governador do estado do Rio Grande do Norte, promulgou a Lei Estadual nº 660/1927, conferindo ao estado o status de ser o primeiro a garantir às mulheres o direito de votar e serem votadas para cargos públicos eletivos.
O TSE noticia ter sido a professora Celina Guimarães Viana a primeira eleitora brasileira, nascida no Rio Grande do Norte, que logo em seguida à promulgação da lei estadual requereu sua inclusão no rol de eleitores do município de Mossoró.
Esse precedente acarretou extensa movimentação na FBPF, que encaminhou ao Senado uma reivindicação pelo voto feminino, com duas mil assinaturas, exaltando: “Desde que uma só exista não há motivo para que não sejam eleitoras todas as mulheres habilitadas no Brasil”.
A Revolução de 1930 tinha como uma de suas pautas principais a reforma eleitoral, com a moralização das eleições e o fim das fraudes generalizadas com a criação de um órgão judicial independente e especializado. Nessa ocasião, dez estados já passaram a aceitar o alistamento feminino, antes mesmo da demanda ter sido atendida em âmbito nacional.
Getúlio Vargas, presidente à época, designou uma subcomissão legislativa que contava com a participação de importantes ativistas da causa feminina. O primeiro esboço da nova lei eleitoral propunha que o voto feminino fosse restrito a mulheres que tivessem renda, de modo que as mulheres financeiramente dependentes, solteiras ou casadas, estariam excluídas da proposta. Irresignadas, as feministas sufragistas se engajaram ao máximo e atuaram incansavelmente para que o voto feminino fosse aprovado na reforma eleitoral.
O Decreto nº 21.076 de 1932, que instituiu o novo Código Eleitoral, incorporou importantes mudanças, entre as quais a positivação das garantias referentes ao voto secreto e ao voto feminino. Reconheceu o voto feminino ao estabelecer que todo cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alfabetizado detinha o status de eleitor. E, por meio do seu artigo 121, facultou o voto aos homens maiores de 60 anos e às mulheres de qualquer idade. Dito em outras palavras, garantiu a faculdade do sufrágio às mulheres alfabetizadas. Nesse particular, o Brasil foi o pioneiro na América Latina.
Embora o voto feminino no Brasil tenha sido reconhecido em 1932 e incorporado à Constituição Federal somente dois anos mais tarde, as mulheres puderam votar e ser votadas pela primeira vez nas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte do ano de 1933. Trata-se de importante vitória de grupos feministas que lutaram bravamente pela equiparação de direitos entre homens e mulheres.
A conquista do voto feminino é, sem dúvida, um marco crucial na história da democratização do Brasil. Contudo, nada obstante todo o avanço, a luta das mulheres por igualdade de direitos ainda é uma temática atual e se reflete nos espaços de poder, em que a maioria absoluta dos cargos é ocupada por homens, a despeito de as mulheres representarem quase 53% de todo o eleitorado brasileiro.
Ou seja, a luta pela conquista dos direitos das mulheres no cenário político é elemento fundamental do processo democrático brasileiro. A efetivação do direito ao voto, atualmente, deve ser alçada a um maior espaço de conquista e representatividade feminina nas instancias de poder político.
Nessa perspectiva, e com o objetivo de garantir maior participação das mulheres na política, em 1995 foi promulgada a Lei nº 9.100, primeira ação afirmativa, que determinava que 20% de vagas de cada partido ou coligação nas eleições das Câmaras Municipais deveriam ser preenchidas por candidaturas de mulheres. Mas foi no ano de 1997 que cotas de gênero passaram a ser exigidas para Assembleias Estaduais e para a Câmara dos Deputados, e o percentual mínimo de vagas destinadas às mulheres passou para 30%. Para a concretização dessa determinação, em 2009 a Lei nº 12.034 alterou o artigo 10 da Lei nº 9.504/1997, de maneira a determinar o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo.
Em 15/5/2018, o Pleno do STF, no julgamento da ADI 5.617, ao dar interpretação conforme à Constituição ao artigo 9º da Lei 13.165/2015, equiparou o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (artigo 10, §3º, da Lei 9.504/1997 — ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do fundo partidário a lhes serem destinados, ou seja, 30% do montante do fundo alocado a cada partido, para as eleições majoritárias e proporcionais. Na hipótese de haver patamar mais elevado de candidaturas femininas, fixou que o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas também lhe seja alocado na mesma proporção. Mais, declarou a inconstitucionalidade do §5º-A e do §7º do artigo 44 da Lei 9.096/1995, que previam a possibilidade de acúmulo de recursos alocados para candidaturas femininas e não utilizados. Modulando os efeitos dessa decisão, determinou que os recursos dessa natureza acumulados em anos anteriores fossem adicionalmente transferidos para as contas individuais das candidatas no financiamento de suas campanhas eleitorais de 2018.
Nos últimos anos houve, de fato, um aumento das iniciativas voltadas ao combate da violência política e maior engajamento para estimular e amparar a participação das mulheres. A Emenda Constitucional nº 111, de 28 de setembro de 2021, estabeleceu a contagem em dobro dos votos a candidatos negros ou mulheres para efeito de cálculo na distribuição dos recursos dos fundos partidários e eleitoral.
Entretanto, aparentemente na contramão dessa evolução, a recente Proposta de Emenda à Constituição 18/21, do Senado, ao fundamento de a medida estar inserida no contexto de política de ação afirmativa de maior efetividade de representação das mulheres na política brasileira, anistia partidos que não tiverem utilizado os percentuais mínimos de 30% de financiamento de campanhas de mulheres em exercícios anteriores. Afasta expressamente a aplicação de sanção de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de gênero ou de raça ou que não destinaram valores mínimos correspondentes em eleições anteriores. A anistia abrange o período anterior à promulgação da emenda e assegura a utilização desses recursos em eleições subsequentes.
Importante apontar que a PEC 18/21 traz como pano de fundo a necessidade de se coibir candidaturas femininas inexpressivas direcionadas exclusivamente ao cumprimento do percentual exigido pela lei. Nessa linha de raciocínio, o mínimo a ser ponderado é que o Pleno do STF, na ADI 5.617, já havia modulado a sua decisão em relação aos recursos pretéritos não utilizados, destinando-os ao pleito eleitoral de 2018.
Se o voto feminino foi o início da concretização de conquistas significativas, passados 90 anos desse marco, ainda assistimos iniciativas que vulnerabilizam o reconhecimento igualitário desse direito e a atuação e representação da mulher no espaço político.
Cecilia Mello é advogada do escritório Cecilia Mello Advogados.
Flávia Silva Pinto Amorim é advogada do escritório Cecilia Mello Advogados.
Júlia Dias Jacintho é advogada do escritório Cecilia Mello Advogados.
Marcella Halah Martins Abboud é advogada do escritório Cecilia Mello Advogados.
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil