Artigo publicado originalmente na ConJur
Por Marina Guapindaia Figueiredo
Muito divulgada como um procedimento mais célere e maleável, a arbitragem já é uma alternativa consolidada à morosidade do Poder Judiciário. Porém, embora a doutrina há muito se debruce sobre os limites da irrecorribilidade da sentença arbitral e os motivos que levam à sua anulação, ainda resta em aberto uma dúvida sobre o tema: até quando pode o árbitro atribuir qualificação jurídica diversa daquela defendida pela parte (iura novit arbiter), sem, com isso, dar causa à impugnação judicial da decisão arbitral?
O cabimento da ação anulatória de sentença arbitral, prevista nos artigos 32 e 33 da Lei nº 9.307/1996 (Lei de Arbitragem), é bastante restrito e abrange apenas hipóteses de vícios formais do julgamento arbitral (error in procedendo).
Qualquer situação que pretenda ingressar no mérito da arbitragem (error in judicando) estará, por consequência, extrapolando os limites legais. Porém, ao mesmo tempo, o artigo 21, § 2º, da Lei de Arbitragem, prevê que serão, “sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento”, sendo que a violação de tais princípios também enseja a ação anulatória, conforme preconiza o artigo 32, VIII, do referido diploma.
Ocorre que, ao revés de aspectos procedimentais ou formais, a análise do (des)respeito a tais princípios nem sempre é tão clara, pois depende de questões subjetivas de interpretação. Por isso, embora parte considerável da doutrina entenda que, ainda que de forma indireta ou reflexa, também estejam incluídas entre as possibilidades de anulação da sentença arbitral as infrações cometidas a qualquer das garantias constitucionais do processo, a prática forense revela que a impugnação das sentenças perante o Poder Judiciário, quando fundada no desrespeito aos princípios constitucionais, têm baixas chances de êxito, o que afasta muitos advogados de levarem as questões para apreciação dos juízes.
Possibilidade de anulação
Nesse sentido, dados recentes do Comitê Brasileiro de Arbitragem, em pesquisa realizada em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria, indicam que as chances de que uma sentença arbitral seja anulada são irrisórias. Ainda de acordo com o estudo, são poucos os casos que as decisões são impugnadas perante o Judiciário, devido à consolidada posição refratária da jurisprudência quanto ao êxito das ações anulatórias [1].
Combinada às baixas chances de provimento dessas ações a expressa previsão legal da necessidade de observância do princípio do livre convencimento do árbitro revela-se outro relevante fator impedidor do sucesso da anulação de decisões arbitrais.
Afinal, são poucos os juízes que se atrevem a limitar o princípio do livre convencimento motivado do árbitro, interferindo na jurisdição arbitral. Porém, contrariamente ao que se depreende a partir do insucesso das tentativas de anulação de decisões arbitrais, são inegáveis o cabimento e a possibilidade de provimento de ações anulatórias fundadas no fato de ter o tribunal arbitral infringido qualquer um dos princípios constitucionais do processo.
Dever de consulta prévia e decisão surpresa
Por isso, adotando-se uma interpretação extensiva do rol previsto na legislação específica, são diversas as hipóteses em que uma decisão arbitral pode ser anulada por violações aos princípios legais que norteiam tanto o processo civil, quanto a arbitragem. Merece destaque, neste breve artigo, a observância ao dever de consulta prévia das partes, inclusive em razão da positivação, em nosso ordenamento jurídico, do princípio da vedação à decisão surpresa (artigo 10 do CPC/2015).
O brocardo do iura novit arbiter preconiza que o árbitro tem o poder de atribuir qualificação jurídica diversa aos fatos aduzidos pelas partes. O atual estado da arte da doutrina pátria no que tange à incidência deste princípio ao processo arbitral proclama que o árbitro não poderá dele se utilizar sem atentar ao dever de consulta prévia das partes, sob pena de violar garantias constitucionais.
Nessa linha, Eliana Baraldi defende a necessidade de o árbitro conciliar os elementos que protegem a higidez do procedimento, como a observância aos princípios do devido processo legal, com a persecução do resultado desejado pelas partes, atingindo a finalidade da arbitragem [2]. Assim, o recurso ao brocardo deve ser feito com cautela, garantindo o contraditório participativo.
Não é diferente o entendimento de Flávio Yarshell. Ele destaca que, embora sejam os árbitros livres para tratar de questões não mencionadas pelas partes, não o podem fazer sem que se respeite o contraditório pleno e eficaz [3]. Na mesma linha, Dinamarco, reconhece a compatibilidade de decisões baseadas em fundamentos não alegados pelas partes com nosso ordenamento jurídico, desde que o árbitro tenha tomado o cuidado de alertar as partes sobre tal novo fundamento [4].
Disso se depreende estar maculada a sentença arbitral quando fundada em questões sobre as quais as partes não puderam se manifestar, o que autoriza o ajuizamento da ação anulatória.
Tendência nascente
Nos tribunais, porém, o tema tem repercutido de maneira mais lenta. São poucos os casos em que se alegou a tese da decisão surpresa como fundamento para anulação de sentença arbitral. E, nos raros casos em que a questão é trazida para o debate, o Judiciário tem se mostrado um tanto recalcitrante em acatá-la.
Não obstante essa dificuldade, o STJ reconheceu que a inserção em nosso ordenamento jurídico do artigo 10 do atual Código de Processo Civil, que prevê ser defeso ao juiz “decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”, cria também em relação ao árbitro o dever de dar às partes a oportunidade de se manifestar sobre eventual fundamento a ser utilizado na decisão (STJ, REsp nº 1.636.102/SP, 3ª Turma, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 13/6/2017).
Nota-se, portanto, uma tendência, ainda que tímida, de que os tribunais passem a refletir entendimento que hoje é plenamente aceito pela doutrina: o de que a ação anulatória de sentença arbitral pode, sim, prestar-se a anular uma decisão de um árbitro devido aos seus fundamentos, sem necessariamente ingressar no mérito do conteúdo decisório.
Em outras palavras, a utilização de fundamentos que não foram colocados em discussão pode configurar error in procedendo, desde que se demonstre a violação ao princípio da vedação à decisão surpresa.
Ressalte-se que não se pretende renegar a incidência do iura novit arbitrae ou do iura novit curiae nas decisões arbitrais, mas sim demonstrar que o árbitro não pode se utilizar de tais brocardos sem dar às partes a oportunidade de debater os fundamentos que serão utilizados, sobretudo porque a discussão tem o poder de alterar o convencimento dos árbitros acerca de tal ponto e, em última instância, a conclusão sentencial [5]. Trata-se, afinal, da própria essência do contraditório que, como visto, também norteia esta espécie processual.
Embora este breve artigo não se ouse destrinchar tema tão complexo, tem-se que, apesar da consolidação da arbitragem como eficiente método de resolução de disputas, o procedimento não está imune a posterior controle judicial. Respondendo à pergunta posta no início, verifica-se que a liberdade do árbitro para tomar suas decisões encontra balizas nos mesmos princípios constitucionais aplicáveis às partes no âmbito do processo civil.
Se o árbitro pode inovar juridicamente sem garantir o contraditório pleno, corre-se o risco de comprometer a confiança no instituto. A resistência do Poder Judiciário em acolher teses que buscam anular sentenças arbitrais baseadas em “decisões surpresa” revela uma certa hesitação em corrigir os excessos da arbitragem, ainda vista como meio impenetrável de resolução de conflitos.
[1] “Processos Relacionados à Arbitragem Um levantamento no banco de sentenças do TJSP Associação Brasileira de Jurimetria 2023-11-22”. Disponível em: https://abj.org.br/pdf/relatorio-arbitragem-reduzido.pdf. Acesso em 08/10/2024.
[2] BARALDI, Eliana. Iura novit curia em arbitragem: da perspectiva internacional aos tribunais brasileiros. In: organização VAZ, Paula Akemi Taba; coordenação GIUSTI, Gilberto. Vários autores. Arbitragem e Poder Judiciário: estudos sobre a interação entre as jurisdições arbitral e estatal. Ribeirão Preto (SP): Migalhas, 2023.
[3] YARSHELL, Flávio Luiz. Ação Anulatória. In: LEVY, Daniel; PEREIRA, Guilherme. Curso de Arbitragem. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais, 2021.
[4] DINAMARCO, Cândido Rangel. A Arbitragem na Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2013.
[5] Sendo certo que, ao analisar a ação anulatória, o Juiz deverá verificar se o fundamento cujo contraditório não foi oportunizado às partes é fundamental para se infirmar a conclusão da sentença arbitral. Se o fundamento é apenas subsidiário ou lateral, é claro que a sentença se sustenta por seus argumentos principais.
Marina Guapindaia Figueiredo é graduada em Direito pela Universidade de São Paulo e pela Université Saint-Étienne, pós-graduada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e advogada associada em Antônio de Pádua Soubhie Nogueira e Antonio Cezar Peluso Advocacia, com experiência na área de contencioso cível.