Opinião

Ainda existem fatos ou “tudo é questão de opinião”?

Narrativas falsas desvirtuam decisões técnicas, fundamentadas na jurisprudência do próprio Supremo e sensatas de Toffoli em caso da JBS, escreve Lenio Streck

 

 

*Artigo publicado originalmente no Poder 360

*Por Lenio Streck

Umberto Eco tem um livro genial chamado “Nos Ombros dos Gigantes”. Um capítulo é destinado a uma dura crítica ao niilismo e ao relativismo. Se eu nego a existência de uma porta e, tentando atravessá-la, quebro meu nariz, essa circunstância não é uma boa prova do fato “porta”? Eco também diz que a frase de Nietzsche, “não há fatos, só há interpretações”, tem um problema: ele, Nietzsche, seria uma mera interpretação?

Como Eco, também acredito em fatos. Aliás, só há interpretações porque existem fatos. Recentemente, vimos que vários veículos de comunicação embarcaram em uma espécie de niilismo. Em vez de verificarem a ocorrência de fatos, optaram pelas narrativas. Falsas. Por elas, o ministro Dias Toffoli, do STF, teria perdoado multa de R$ 10 bilhões da empresa JBS. Isso tudo em decisão indevidamente monocrática e sem se dar por suspeito porque sua mulher é advogada do escritório de advocacia que defendeu a empresa multada.

A mesma fabricação/opção por narrativas ocorreu com a decisão por meio da qual Toffoli suspendeu –em idêntico caso da JBS– multa que foi aplicada à Odebrecht (atual Novonor), em acordo de leniência, firmado em idênticas circunstâncias de pressão. Uma das manchetes chega a dizer, assustadoramente, que “Decisão de Toffoli escancara ‘liberou geral’ de multas por corrupção”. A diferença em relação ao caso da Novonor é que não havia o argumento de a mulher do ministro ser advogada.

Aos fatos. Antes da fuga para as montanhas, convém dar uns passos atrás –e não com os pés de Curupira– para saber o que ocorreu. Afinal, fatos existem. Tivessem apurado melhor, teriam descoberto fatos escondidos por debaixo das interpretações.

Vejamos. Primeiro, as decisões foram monocráticas porque, igual a elas, há centenas. Ademais, nenhuma parte da matéria decidida por Toffoli inova em relação aos precedentes da Suprema Corte.

Segundo, esqueceram de dizer que Toffoli não atendeu ao principal pedido da J&F –que era o de suspender os negócios jurídicos firmados pelo grupo antes do acordo de leniência. Com isso, o conglomerado não conseguiu até o momento rever a venda da Eldorado, transação que está sendo contestada há tempos.

Terceiro, por verificar irregularidades na celebração do acordo (isso também foi detectado no caso da Novonor, ex-Odebrecht), Toffoli tão somente suspendeu o pagamento da multa que foi imposta à J&F para que ela pudesse continuar operando, na linha do art. 219 da Constituição. Portanto, a decisão tem natureza cautelar. Não houve perdão. O ministro determina que a empresa reavalie com a CGU (Controladoria Geral da União) se houve ou não problema nos acordos de leniência.

Quarto, no caso da JBS o valor da multa de R$ 10,3 bilhões é absolutamente incorreto; o próprio MPF (Ministério Público Federal) já corrigiu uma série de erros de cálculo e baixou para R$ 3,5 bilhões. Desses, aliás, a empresa já pagou R$ 2,9 bilhões.

Quinto, as decisões têm tudo que se espera de um julgador: responsabilidade e fundamentação idônea. Isso porque, ao identificar dúvida razoável sobre o requisito de voluntariedade nos acordos de leniência, Toffoli percebeu o que estava em jogo e, por meio de decisões técnicas, fundamentadas na jurisprudência do próprio Supremo e sensatas, determinou a suspensão do pagamento das multas e permitiu a reavaliação dos anexos dos acordos.

Sexto, com relação à JBS, as alegações de existência de impedimento ou suspeição do ministro no caso são, no mínimo, equivocadas, chegando à beira da ofensa. Bastava consultar um fato, a ADI 5.953 —que declarou a inconstitucionalidade de lei que estabelecia o impedimento do juiz nos processos em que a parte for cliente do escritório de advocacia do cônjuge. Até mesmo porque, no caso, a cônjuge do ministro sequer atua no caso.

Aliás, considerando tratar-se de uma grande banca de advogados, validar esse raciocínio poderia inclusive inviabilizar o trabalho do escritório perante o Supremo. Portanto, nada a objetar da decisão de Toffoli.

Sétimo, a concessão de acesso ao material da operação spoofing é medida que já tinha sido adotada em relação a outros acusados da operação Lava Jato, diante das graves acusações de conluio entre acusadores e juízes. As empresas firmatárias dos acordos têm o direito de saber a dimensão do vício da atuação do Ministério Público. Não esqueçamos que, ao diferentemente do que ocorre no resto do mundo, por aqui os acordos contêm sérios indícios de terem sido forçados. Além do fato de que, ao punirem os dirigentes, também puniram as empresas, jogando fora a água suja com a criança dentro.

Oitavo, e último, todos os acordos devem ter como pressuposto a boa-fé objetiva. Há cheiro de violação a esse pressuposto. Nesse sentido, há o precedente da Reclamação 43.007, em que está reconhecida a ilicitude dos abusos cometidos pela operação Lava Jato, invalidando delações e suspendendo a leniência da Odebrecht. O que fez a J&F? Simples. Requereu a extensão dessa decisão para que lhe fosse possibilitado o acesso ao material da “spoofing”, a fim de ver a amplitude das ilegalidades e seus reflexos no acordo assinado. A decisão de Toffoli só aplica a isonomia. E, no caso da Novonor, trata-se da “aplicação da aplicação”, por assim dizer.

Como se percebe, existem fatos. Que valem mais do que as narrativas. O livro de Umberto Eco ensina muito. Eco se vale da frase do monge Bernardo de Chartres: “Quem vê mais, um anão ou um gigante? Certamente um gigante, respondem Chartres e Eco, pois os seus olhos estão situados em nível superior aos do anão. Mas se o anão fica sobre os ombros de gigantes, quem vê mais?” Assim também nós somos anões sobre os ombros de gigantes. No caso, os fatos são os gigantes. Respeitemos os gigantes. Deixemos que nos falem.

Lenio Streck, 68 anos é mestre e doutor em direito pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), com pós-doutorado pela Universidade de Lisboa. É ex-procurador da Justiça do Rio Grande do Sul e professor de pós-graduação em direito da Unisinos e da Unesa. Integra a Academia Brasileira de Direito Constitucional e é autor de mais de 80 livros e 350 artigos em revistas especializadas.

Foto: Reprodução

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