Por Waleska Miguel Batista*
Artigo publicado originalmente na ConJur
O racismo é um dos problemas estruturais do Brasil. Atribui vantagens ou desvantagens com fundamento na raça, de modo que a discriminação racial está normalizada e naturalizada nas relações sociais. Trata-se de uma ideologia de poder que tem o condão de determinar como será a vida das pessoas, delimitando, inclusive, a acessibilidade de espaços em todos os setores da sociedade. Assim, tanto pessoas negras quanto pessoas brancas são por ele constituídas (Almeida, 2018).
Quando pensamos especificamente no aspecto econômico, o racismo apresenta diversas consequências, como fazer com que a população negra tenha mais dificuldade de acesso ao crédito, por fatores que atravessam esse grupo antes mesmo de formalizarem o pedido junto às instituições bancárias para obter empréstimos ou financiamentos, por exemplo.
Apesar de o processo de acesso ao crédito ser aparentemente democrático, as instituições financeiras exigem a análise dos solicitantes de crédito quanto à garantia de satisfação do crédito, o que dificulta o deferimento de acesso ao crédito à população negra. Dentre os itens analisados está a renda: quanto mais elevada, maiores as chances de deferimento do crédito, já que presente a possibilidade de adimplemento da dívida.
Sobre isso, Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do atual governo, afirma que o racismo afeta a vida material de todas as pessoas, particularmente dos homens negros e das mulheres negras, que vivem à mercê de toda forma de violência direta ou indireta, ainda que nosso Estado preveja, formalmente, a igualdade e a não-discriminação.
O Estatuto da Igualdade Racial, Lei nº 12.288/2010, prescreve o combate à discriminação racial na ordem econômica e social (artigo 1º, inciso I); a participação da população negra na vida econômica por meio de “inclusão nas políticas públicas de desenvolvimento econômico e social” (artigo 4º, inciso I), de acesso ao crédito para investimento agrícola (artigo 29); além do dever do Poder Público de assegurar oportunidade no mercado de trabalho e “o acesso ao crédito para a pequena produção, nos meios rural e urbano, com ações afirmativas para mulheres negras” (artigo 39, §5).
Outro fator relevante de análise para solicitação do crédito é o histórico financeiro do solicitante, ou seja, a movimentação financeira das contas dentro do prazo de vencimento, pois a inadimplência faz que os dados do solicitante sejam encaminhados para o Serasa. Para ampliar as possibilidades de crédito, as instituições financeiras aceitam o oferecimento de bem móvel ou imóvel como garantia. No entanto, esses mecanismos de análise para acesso ao crédito são impactados pelo racismo, que mantém a população negra com os piores rendimentos, ainda que sejam microempreendedores individuais.
Os dados a seguir apontam que pessoas negras empresárias têm os piores lucros, menor índice de formalização das empresas e as pessoas físicas negras recebem menos do que as brancas. Desta forma, a população negra tem uma vida mais precária e não porque ela quer, mas por causa do racismo.
No artigo de minha autoria, Direcionamento do dinheiro das mulheres negras no Brasil, foi apresentado como o racismo impõe um ônus no uso do dinheiro das mulheres negras, o que evidencia ainda mais a dificuldade de acesso ao crédito, quando analisado o rendimento e a “saúde econômica” com as instituições financeiras [1].
Dados do Sebrae do Empreendedorismo por cor e raça (2021) apontam que, do total de empreendedores que são homens brancos, 59% não possuem formalização do CNPJ, enquanto entre os homens negros esse índice é de 80%. Por gênero, a disparidade é mantida: 59% das mulheres brancas não possuem a formalização do CNPJ, enquanto 76% das mulheres negras não a têm. Os homens negros são os que apresentam a menor proporção de formalização do CNPJ — apenas 20% possuem CNPJ.
O rendimento mensal dos microempreendedores também é desigual, visto que, em média, o rendimento mensal dos empreendedores (as) negros (as) é 34% inferior ao dos (as) brancos (as). No 2º trimestre de 2021, o rendimento médio dos microempreendedores brancos era de R$ 2.587; por outro lado, o das microempreendedoras negras era de R$ 1.714 (Sebrae, 2021), ou seja, mais de 30% menor.
Quando se observam os dados para a pessoa física, a desigualdade no rendimento entre pessoas brancas e pessoas negras persiste. Dados do IBGE de Indicadores estruturais do mercado de trabalho de 2021 das pessoas de 14 anos ou mais, segundo nível de instrução e cor ou raça, mostram que, do total de 53.619 pessoas ocupadas em trabalhos formais, 27.221 eram brancas e 25.823 negras (pretas e pardas). Ademais, o rendimento médio mensal de pessoas ocupadas brancas (R$ 3.099) foi muito superior ao de pretas (R$ 1.764) e pardas (R$ 1.814).
Independentemente do nível de instrução, com formação de ensino médio ou superior, a disparidade de renda entre pessoas brancas e pessoas negras é imensa, chegando a 50% de diferença em algumas atividades profissionais. Apesar de a população ocupada preta ou parda ter sido estimada como maioria em 2021 (53,8%), essa população estava presente em apenas 29,5% de cargos gerenciais. Em contrapartida, a população ocupada branca, mesmo perfazendo 45,2% do total populacional, representava 69,0% desses cargos. Segundo o IBGE (2022), esse padrão foi identificado nas cinco grandes regiões do país, notando-se que, quanto mais alto o rendimento, menor é a proporção de pessoas pretas ou pardas. Dentro da classe com rendimento mais elevado, somente 14,6% das pessoas ocupadas em cargos gerenciais eram pretas ou pardas, ao passo que, entre as brancas, tal proporção chegou a 84,4% (IBGE, 2022).
Para além disso, o ilocomotiva apontou que 79% da população negra sofreram discriminação dos funcionários das instituições financeiras quando solicitaram acesso a crédito, com algumas das seguintes situações: I) “a equipe não te atende por achar que você não tem dinheiro” — neste caso, o julgamento vem pelo imaginário social de que as pessoas negras não são honestas, são pobres, não têm capacidade de gestão etc., ou outros motivos de viés racista; II) alguém diz que “ouvi dizer que aquele estabelecimento não é para você”— como se as instituições financeiras fossem apenas lugar de pessoas brancas (Cufa; Locomotiva, 2022).
Nesse sentido, a população negra tem, na prática, mais dificuldade de conseguir empréstimos ou financiamentos, pois no primeiro requisito de avaliação já não atende ao requisito da renda necessária, em comparação com pessoas brancas. Na sequência, o imaginário de que as pessoas negras são incapazes, incompetentes e desonestas também impõe outra barreira. Para o ilocomotiva, a população negra não tem acesso ao crédito por essas questões que a desqualificam, mesmo antes de chegar ao banco. Quando se fala em mulheres negras, a dificuldade de acesso é ainda maior em razão do acúmulo de opressões.
A partir da pesquisa realizada pelo Sebrae FGV em 2021, a revista Exame apontou que 65% dos empreendedores negros que solicitaram empréstimos tiveram o crédito negado, contra 58% dos empreendedores brancos.
Uma vez que nossa legislação possui dispositivos de repúdio ao racismo e toda forma de discriminação racial, por certo, o combate a este problema estrutural é fundamental para que se garanta desenvolvimento econômico e social. O acesso ao crédito é uma garantia para que as pessoas consigam investir em seus negócios, adquirir bens e produtos e ter melhor qualidade de vida. A maioria das solicitações de acesso ao crédito não é feita para suprir uma vida luxuosa, mas para proporcionar condições dignas e dar andamento no seu plano de negócio e projeto de vida pessoal. É necessário, além de cumprir a legislação, que a sociedade em geral — e os tomadores públicos de decisão em particular — estejam empenhados em implementar de fato o acesso ao crédito.
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
EXAME. Disparidade entre brancos e negros no acesso a crédito cresce na crise. Agencia Sebrae de notícias, 24 nov. 2020. Disponível em: https://exame.com/pme/disparidade-entre-brancos-e-negros-no-acesso-a-credito-cresce-na-crise/. Acesso em: 20. jan. 2023.
IBGE. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. 2ª Ed. Estudos e Pesquisas • Informação Demográfica e Socioeconômica, nº 48, 2022.
ILOCOMOTIVA. O mercado da maioria: periferia e diversidade como estratégia de negócio. CUFA – LOCOMOTIVA, 2022.
SEBRAE. Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. Relatório Empreendedorismo raça-cor no Brasil, novembro de 2021.
[1] O artigo pode ser consultado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/direcionamento-do-dinheiro-das-mulheres-negras-no-brasil-16102022. Acesso: 18 jan. 2023.
Waleska Miguel Batista é advogada, consultora de relações governamentais do Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário (ITCN), doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestra em Sustentabilidade e Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), integrante do Grupo de Pesquisa Estado e Direito no Pensamento Social Brasileiro (CNPq) e pesquisadora sobre os temas de racismo, sexismo, pensamento social, direito e economia.