Por Ricardo Alves*
Artigo publicado originalmente no Estadão
No dia 28 de setembro foi divulgada a 18ª edição do relatório Justiça em Números, anuário estatístico editado desde 2009 pelo CNJ.
Graças à pandemia, em 2020 foram distribuídos apenas 3,1% de processos físicos e 21,8 milhões de casos novos eletrônicos (96,9%), o que representa o maior percentual de processos eletrônicos registrado na série histórica do anuário.
Os recentes ataques aos sistemas dos Tribunais, como o que ocorreu no TJ RS e no STJ, indicam a absoluta dependência dos sistemas informatizados. Outro bom exemplo foi a interrupção dos serviços do Facebook, WhatsApp e Instagram, que provocou um enorme efeito cascata em escala global.
O título deste artigo abre uma discussão: na nova era de Juízo quase 100% Digital, com mais processos eletrônicos, há mais chances de aumento de casos de fraude nos processos judiciais?
A fraude, individualmente considerada, é algo que ocorreu e ocorrerá sempre. Novas tecnologias implicam novas formas de uso fraudulento dos processos e novas técnicas de identificação e anulação das mesmas.
Mas as grandes fraudes coletivas são uma novidade!
Há anos que demandas artificiais têm impactado tanto o Judiciário — que quase virou um balcão de atendimento de empresas —, quanto os consumidores — que têm enfrentado maior lentidão na prestação jurisdicional.
A tecnologia permite o ganho de escala, pois o aumento na “produção” não vem acompanhado de um aumento proporcional no custo, fazendo com que o custo médio de uma ação seja cada vez mais barato e assim gerando redução de custos e aumento da lucratividade. Hoje é fácil e barato elaborar milhares de petições com ferramentas simples que estão à disposição de todos, como a mala direta do Microsoft Word, por exemplo. Até a distribuição pode ser feita com a ajuda de um robô, uma automação robótica de processos (Robotic Process Automation, RPA), um software fácil de usar para automatizar tarefas repetitivas. Com o uso do RPA, os usuários criam robôs de software, ou “bots”, que podem aprender, simular e executar procedimentos.
A tecnologia também facilita a publicidade da advocacia, cada vez mais difundida e especializada, com uso de redes sociais que permitem atingir milhões de pessoas num piscar de olhos e com baixo custo. Os cartões de visita, que no passado eram distribuídos pelos advogados aos seus potenciais clientes, praticamente foram extintos. Hoje convivemos com Apps criados para incentivar o ingresso de novas demandas judiciais, que antecipam o valor da indenização ao consumidor, plataformas com inteligência artificial que negociam acordos, antes mesmo da citação da empresa.
Em junho o juiz da Terceira Vara Cível de Cuiabá, Luiz Octávio Saboia Ribeiro, pediu informações ao Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado (Gaeco) de Mato Grosso do Sul, sobre advogados que estariam realizando “advocacia predatória” contra instituições financeiras. Um único advogado foi responsável por distribuir, em relativamente curto espaço de tempo, nada menos do que 49.244 ações contra instituições financeiras. O processo ainda cita outros dois advogados, que assinam, respectivamente, 16.078 e 13.288 processos também contra instituições financeiras. Os números são tão despropositados que não seria nenhum exagero presumir que os advogados não conheciam a grande maioria dos seus clientes. Os autos revelam ainda que os advogados são residentes de Mato Grosso do Sul: “Mencionados advogados são residentes na cidade de Iguatemi/MS, e movem ações em todo o país, sendo que figuram entre os maiores litigantes individuais contra instituições financeiras do país, uma vez que somam 78.610 ações”, diz trecho dos autos. Esse enorme volume de ações só é possível graças à tecnologia, que além de aumentar a produção de petições, facilitar o contato e a troca de documentos entre advogados e clientes, também elimina as fronteiras.
A mesma tecnologia que reduz custos e acelera processos também deve ser utilizada para combater práticas ilegais, pois em grande escala impacta na distribuição e atrasa a prestação jurisdicional de outras ações legítimas, o que obrigou à criação de uma nova expertise na análise de processos judiciais. Já existem sistemas dotados de inteligência artificial que detectam número de protocolos falsos (aqueles que são informados ao consumidor quando este abre uma reclamação no SAC). Outra estratégia é detectar petições iniciais quase idênticas, genéricas, o que poderia indicar um foco de demandas artificiais como o identificado no Mato Grosso do Sul. Por mais surpreendente que possa ser, são checadas as datas da contratação do serviço reclamado e da procuração, pois não são raros os casos em que a contratação do advogado se deu antes dos fatos, o que se evidencia na data da procuração ou do substabelecimento.
Alguns Tribunais criaram nos últimos anos grupos de trabalho para averiguação de eventuais irregularidades na propositura de ações judiciais, com o apoio administrativo de órgãos de Tecnologia dos respectivos Tribunais, que auxiliam fornecendo ferramentas de gestão judiciária que facilitam a detecção das fraudes, como resposta para a contínua judicialização dos conflitos que promove um engessamento do Poder Judiciário.
Até mesmo empresas acionadas têm ajudado com o fornecimento de elementos para identificação de fraudes.
Na esteira da divulgação do relatório Justiça em Números, o Superior Tribunal de Justiça, que adotou a inteligência artificial como um dos eixos estratégicos, estabeleceu uma parceria com o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, para aprimorar e modernizar o gerenciamento de precedentes entre a corte superior e o TJRJ. A parceria está prevista em um acordo de cooperação técnica firmado pelas duas instituições dia 29 de setembro último, que permitirá maior agilidade no exame de admissibilidade recursal pelo TJRJ, com o emprego de inteligência artificial, que aumentará a eficiência na aplicação de precedentes e uniformização de jurisprudência.
Para combater o mau uso da tecnologia é necessário um plano de ação que permita a efetiva desjudicialização. Pensando no sistema do Judiciário no Brasil, todos estão conectados e dependentes, seja o magistrado, o consumidor, a empresa, o funcionário da empresa e, especialmente, o desempregado. Reduzir o volume de processos judiciais seria um bom estímulo para o aumento de vagas de emprego. Cada personagem precisa fazer a sua parte. Empresas precisam adotar práticas de ESG (Environmental, Social and Governance), que indica quanto um negócio busca formas de minimizar seus impactos no meio ambiente, construir um mundo mais justo e responsável para as pessoas em seu entorno e manter os melhores processos de administração.
Um bom exemplo é a Agenda 2030. Em 2015 António Guterres, secretário geral da ONU, disse que “A Agenda 2030 é a nossa Declaração Global de Interdependência”. Com a tecnologia vivemos a era da globalização, que afeta as relações entre países, numa visão macro e gera impactos em toda a sociedade.
A Agenda 2030 é um plano de ação para as pessoas, o Planeta e a prosperidade, que busca fortalecer a paz universal. O plano indica 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os ODS, e 169 metas, para erradicar a pobreza e promover vida digna para todos. São objetivos e metas claras, para que todos os países os adotem de acordo com suas próprias prioridades e atuem no espírito de uma parceria global que orienta as escolhas necessárias para melhorar a vida das pessoas, agora e no futuro. Na esfera do Poder Judiciário, como mediador em conjunto com os poderes Executivo e Legislativo, seria aplicável o ODS 16 “Paz, Justiça e Instituições Eficazes”, que visa promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.
Em 2020 foi lançada pelo governo federal a Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil (EFD) no período de 2020 a 2031, considerando o contexto da pandemia e da necessária e urgente retomada econômica, composta por cinco eixos: econômico, institucional, infraestrutura, ambiental e social. O principal objetivo é elevar a renda e a qualidade de vida da população brasileira com redução das desigualdades sociais e regionais, o que proporcionaria uma significativa melhora no Índice de Desenvolvimento Humano, elevando a posição do Brasil no mundo. A desjudicialização nas relações trabalhista e de consumo seria uma boa estratégia para atingir esse objetivo.
*Ricardo Alves, sócio responsável pela área de Tecnologia e Inovação do Fragata e Antunes Advogados