Por Olga Vishnevsky Fortes*
Artigo publicado originalmente na ConJur
Li que levamos, em média, um ano para purgar a dor da morte de um ente querido. Não é que esqueçamos do evento, ou da pessoa que se foi, mas a dor pungente é mitigada nesse tempo. E, se tamanha dor se vai, com maior razão há de haver um tempo para se esquecer da dor ou do prejuízo trazidos pelos conflitos.
É por tal razão que prefiro ver a prescrição de forma mais poética, de modo a melhor compreendê-la. Defino-a como o esquecimento institucional do conflito, ante a omissão do titular em exercer o direito violado. É o Estado entendendo que o conflito deve ser esquecido, diante da inércia do titular. O tempo de esquecimento haverá de variar segundo a relevância social do conflito e, portanto, segundo o interesse do Estado em prover sua solução.
É esse esquecimento institucional do conflito que atinge a pretensão do titular do direito, que, omisso, não pode mais exercitá-lo, embora o devedor, ao adimplir a prestação (direito prestacional), não possa repeti-la. Na decadência não há o esquecimento institucional do conflito, mas o decreto de morte do direito (potestativo), pelo decurso do tempo.
Na prescrição, temos de atentar para as várias lições de Direito e de processo, entre as quais as que aqui nos importam: para cada conflito, um tempo de “esquecimento” e, portanto, um tempo certo para o exercício do direito; eventos podem impedir a contagem do prazo prescricional quando ainda não exercitado o direito; eventos podem interromper ou suspender a contagem do prazo prescricional quando já iniciado o exercício do direito.
Assim é que, para nossa triste surpresa, a pandemia chegou como o maior e mais nocivo evento mundial depois da Segunda Grande Guerra. Por certo que um evento de tal magnitude tenha trazido efeitos para a vida, para os conflitos dela advindos e, portanto, para o Direito e para o processo.
A vida e os conflitos se antecipam à lei, e normas de suspensão de prazos processuais foram sendo criadas para resguardar direitos, e mais normas foram criadas para uniformizar as normas (CNJ Resolução 313 de 19/3/20, suspendendo os prazos até 30/4; CNJ Resolução 314, afirmando o término da suspensão para os processos eletrônicos a partir de 4/5/20; CNJ Resolução 318, possibilitando a suspensão de prazos na hipótese de lockdown ou a requerimento do tribunal local; CNJ Portaria 79/20, estendendo a validade das resoluções até 14/6; CNJ Resolução 322, estabelecendo regras mínimas para o retorno do atendimento presencial), e, por fim a Lei 14010/20, veio para discorrer sobre a prescrição durante a pandemia.
Nessa esteira, algumas questões surgirão para que o Judiciário, em especial o trabalhista, resolva: se a pandemia poderia ser qualificada de “força maior”; se houve a suspensão dos prazos ou a suspensão dos processos e qual a diferença; quais seriam os efeitos da suspensão dos prazos para a verificação da prescrição; o alcance da Lei 14010/20 no direito e processo do trabalho e seus efeitos no tempo.
O parágrafo único do artigo 393 do Código Civil define o caso fortuito ou a força maior como o “fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. Destaco que fato necessário é aquele que não depende da vontade das partes. A pandemia se enquadra, pois, perfeitamente na descrição legal.
O artigo 313, VI, do CPC, por seu turno, prevê que a força maior suspende os processos, e, por consequência lógica, também os prazos. Porém, ainda que haja tal previsão expressa, o CNJ entendeu que a mera suspensão dos prazos seria mais plausível, salvo em relação aos processos físicos, dada a possibilidade de adoção do atendimento remoto, que vem sendo efetivamente realizado.
Há que se fazer a diferenciação: enquanto na mera suspensão dos prazos tanto o juiz quanto a secretaria podem praticar atos processuais, na suspensão dos processos todo e qualquer ato processual, salvo os urgentes, sofre suspensão, como se infere do disposto no artigo 314 do CPC.
Embora não haja previsão legal específica de suspensão de prazos por força maior, entendo que a legislação vigente trata do assunto por analogia e a questão da não contagem da prescrição poderá ser aplicada para os processos que tiveram os prazos suspensos segundo as normas do CNJ (de 19 de março a 4 de maio de 2020 ou em caso de adoção do lockdown por tribunal ou outra restrição local).
Pois bem, o artigo 775-A da CLT prevê a suspensão de prazos processuais nos recessos forenses. O artigo 220 do CPC, que cito apenas para reforçar o argumento, tem a mesma previsão para as férias forenses.
Veja-se que a suspensão de prazos do recesso e férias forenses tem a previsão da prática de atos pelo Judiciário (§1º do artigo 775-A), tal qual as resoluções do CNJ expedidas durante a pandemia. Assim, não obstante os fundamentos do recesso e férias forenses não se coadunem com os do isolamento social, certo é que seus efeitos — suspensão de prazos — são idênticos.
Dessa forma, os efeitos da suspensão dos prazos se observam tanto na hipótese de recesso forense quanto na de isolamento social pela pandemia tratada pelas resoluções do CNJ, fato que permite que tenham o mesmo tratamento quanto à prescrição. Suspensos os prazos, ainda que não haja suspensão dos processos, não correrá a prescrição.
Nesse ponto, merece destaque o fato de que o STJ tem entendido, de forma reiterada, que a suspensão dos prazos alberga não somente os prazos processuais, mas também os de natureza material, albergando, pois, a contagem do prazo prescricional. Tal entendimento foi esposado em outros julgados sobre o tema (Resp nº1.446.608 – RS, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino; EREsp 667.672/SP, Rel. Ministro José Delgado; REsp 167.413/SP, Rel. Ministro Garcia Vieira).
O TST, por seu turno, também decidiu sobre o tema, de forma reiterada (RR-101865-33.2016.5.01.0461, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 30/08/2019; RR-154-07.2016.5.09.0026, 3ª Turma, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 13/12/2019; RR 1000- 45.2004.5.03.0015. Relator Min. Antônio José de Barros Levenhagen. 4ª Turma. DJ 03/06/20005).
A Lei 14010/20, que está em vigor desde 10 de junho, previu no artigo 3º que “os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020”.
O novo diploma, aplicável às relações de trabalho por força do artigo 8º da CLT, prevê, então, a hipótese de impedimento (início) ou suspensão (em curso) da prescrição durante a pandemia, mas ainda que tenha eficácia, a terá apenas para os casos em que a hipótese fática ocorrer após a sua vigência e até a data que especificou, ou seja, de 10 de junho a 30 de outubro.
Teríamos, pois, um problema a ser enfrentado quanto às situações anteriores à lei, não acobertadas pela suspensão dos prazos pelo CNJ (de 4 de maio a 9 de junho para a maioria dos tribunais), ante a vedação da retroatividade. Para esses casos, entendo que somente a efetiva demonstração de que não houve omissão do titular do direito poderia afastar a hipótese de prescrição, que pressupõe a inércia. Para os casos posteriores a 30 de outubro, a prescrição voltará, então, a correr.
Olga Vishnevsky Fortes é juíza titular da 7ª Vara do Trabalho da Zona Sul de São Paulo, vice-presidente da ABMT (Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho) e pós-graduada em Processo Civil e Administração Judiciária.
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