Por Donne Pisco
Artigo publicado originalmente na ConJur
A pandemia da Covid-19 precipitou uma vastidão de iniciativas médico-científicas voltadas ao entendimento da doença, sua prevenção e cura — o que desencadeou estudos os mais diversos, dada a urgência correspondente à amplitude e à relevância do problema.
Ao largo da produção científica afeta ao Sars-Cov-2 em curso nos centros de pesquisa mundo afora, a premência do atendimento médico-hospitalar e a aflição de médicos à vista do enfrentamento do desconhecido resultaram, como expressão da autonomia profissional, na experimentação de alternativas terapêuticas alheias aos rigores metodológicos e à ética em pesquisa. É o chamado uso off label, com a utilização da droga de maneira divergente da orientação lançada na bula do medicamento.
Com o avanço dos estudos, algumas hipóteses terapêuticas inicialmente promissoras, que sugeriam eficácia na fase pré-clínica de pesquisa, revelaram-se inócuas no enfrentamento da doença, resultando em reconsideração de recomendação de uso e revisões de publicações — como aquela envolvendo a cloroquina e a hidroxicloroquina veiculada na revista científica International Journal of Antimicrobial Agents, e que impôs mudança da política editorial daquele periódico após a polêmica do trabalho, dada a inconsistência dos dados fornecidos pela empresa Surgisphere, utilizados pelos autores do artigo.
Em paralelo, os ditos remédios seguiram compondo coquetéis prescritos não só para o tratamento, como também para a prevenção da doença, chegando a ancorar política oficial do Ministério da Saúde e ferramenta como o TrateCOV, apoiada novamente na autonomia médica, a qual autorizaria a escolha da terapia farmacológica adequada, em consenso entre paciente e médico assistente. Igual conclusão constou do Parecer nº 4/2020, do Conselho Federal de Medicina (CFM), segundo o qual, apesar de ressalvar que, até aquele momento, abril de 2020, não houvesse trabalhos comprobatórios do benefício do uso da cloroquina e hidroxicloroquina, seu uso poderia ser considerado.
Contudo, diversamente da premissa apontada pelo Ministério da Saúde e pelo CFM, a autonomia médica é sujeita a limitações inerentes à sua responsabilidade profissional, conforme revela o inciso XXI do Capítulo I do Código de Ética Médica, segundo o qual a eletividade das hipóteses terapêuticas, conforme a escolha orientada do paciente, restringem-se àquelas cientificamente reconhecidas. Trata-se de postulado normativo ao qual mesmo os órgãos de estado e o conselho de fiscalização profissional estão submetidos e que expressa a responsabilidade civil do médico condutor e os riscos a isso inerentes.
A urgência de soluções terapêuticas gerada pelo agravamento da pandemia e o aumento do número de infecções e internações não inaugura circunstância liberatória ao manejo indiscriminado de medicamentos em caráter experimental ou especulativo para o tratamento da doença, e, ainda que contem com a anuência do enfermo ou de seus familiares, não isentam médicos da responsabilização ética e civil, sobretudo após as hipóteses levantadas sobre eficácia do chamado “tratamento precoce” terem sido descartadas e seu uso, fortemente não recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Exemplo disso é a notícia recente da abertura de sindicâncias pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo para apurar a prescrição e divulgação do uso de remédios sem eficácia comprovada contra a Covid-19.
Vale dizer: ao médico cabe aceitar “as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas”, sem descurar de sua responsabilidade, “em caráter pessoal e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e executados com diligência, competência e prudência”, conforme dispõem os incisos XIX e XXI do Capítulo I do Código de Ética Médica.
Com efeito, mesmo no afã de construir soluções terapêuticas motivadas em propósitos defensáveis, a adoção de medicamentos para uso off label estará sempre associada à responsabilidade pessoal do médico prescritor, especialmente quando resultar em efeitos adversos graves, o que pode sujeitar o profissional a processos ético-disciplinares — fato que impõe cautela especial no ato decisório, independentemente da aceitação do paciente, que, em estado de perigo ou necessidade pelo risco de agravamento do quadro ou morte, será sempre relativa.
*Donne Pisco é sócio-fundador do Pisco & Rodrigues Advogados.