Por Isabella Fochesatto Panisson*
Artigo publicado originalmente na ConJur
Ao longo dos tempos, seja por aspectos econômicos, ideológicos, culturais e, principalmente, em virtude da extrema complexidade do sistema tributário brasileiro, foi construído um sistema de polarização entre o Fisco e o contribuinte, impedindo espaços abertos para o diálogo e a colaboração na resolução de divergências de forma consensual, resultando em uma cultura típica de judicialização de temas tributários. É quase que automático o direcionamento das controvérsias ao litígio pelos agentes envolvidos no fenômeno tributário, seja em vias administrativas ou judiciais — afinal, não faltam incentivos para tanto.
Não é preciso ser especialista para perceber que os modelos tradicionais de discussão e cobrança do crédito tributário, em conjunto com a crise do Judiciário, em diversas situações se mostram ineficazes, desgastantes, onerosos tanto para o Fisco como para o contribuinte, de extrema insegurança jurídica e, por final, prejudiciais à própria Administração Pública, que em tantas oportunidades, em prol da máxima “indisponibilidade do crédito tributário”, acaba por não receber qualquer receita, colocando em xeque o fundamento do próprio princípio.
Embora comumente direcionados ao litígio, entendemos que em muitas oportunidades os interesses dos agentes poderiam ser acordados em uma “sala de conversa”, bastando tão somente que as premissas fossem colocadas à mesa. Isto é, de um lado, grande parte dos contribuintes almeja a certeza e a segurança jurídica de cumprimento exato das normas tributárias e o pagamento do justo valor à título de tributo. Na prática tributária, verificamos que muitos contribuintes gostariam de ter um melhor acesso ao Fisco e a possibilidade de diálogo para atingir tais objetivos em virtude de uma legislação extremamente complexa.
De outro lado, o Fisco requer uma arrecadação mais efetiva e o cumprimento de suas metas fiscais de receita esperada, considerando a atuação colaborativa do contribuinte para cumprimento das normas e o pagamento dos tributos. Coerente concluirmos que, embora os interesses sejam diferentes, ambos resultam em benefícios mútuos. Porém, como harmonizar tais interesses, reduzir os custos e a burocracia, superando as barreiras de polarização de uma forma consensual e com uma margem de segurança jurídica? É uma realidade possível pensar em um sistema “ganha-ganha”, ou ainda uma utopia, diante de uma cultura avessa ao diálogo?
Por conta desse contexto, os meios alternativos de resolução de conflito como a mediação, a conciliação, a arbitragem, a transação e a negociação tomaram uma grande relevância nos debates tributários nos últimos anos. No que diz respeito à mediação tributária, objeto desta breve reflexão, em um primeiro momento, parece requerer um “esforço maior” para a construção de uma nova cultura nas relações entre o particular e os entes públicos [1], visto que necessita de um espaço aberto e seguro para o diálogo, que permita com que as próprias partes resolvam o conflito, o que hoje em dia ainda não se tem; ao menos não regulamentado e disponível a todo e qualquer contribuinte, visto que não são raras as vezes que contribuintes com melhor acesso ao Fisco conseguem dialogar informalmente sobre a concessão de benefícios fiscais, questões fáticas e técnicas da operação da empresa e/ou da quantificação do crédito tributário, inclusive antes do lançamento tributário.
A Lei nº 13.140/2015, que já regulou a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e a autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública, entende por mediação “(…) a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia” [2]. Ou seja, trata-se de um meio de resolução de conflito com que um terceiro capacitado em técnicas de negociação vai auxiliar as partes na construção do diálogo.
Recentemente foi apresentado o primeiro projeto-piloto no país de mediação tributária pelo município de Porto Alegre, através do Projeto de Lei nº 033/21 [3], criando, em conjunto, uma Câmara de Mediação e Conciliação Tributária vinculada à Secretaria Municipal da Fazenda e Procuradoria-Geral do município, que, conforme suas diretrizes, propiciará um espaço de discussão tanto em vias administrativas quanto judiciais em matéria tributária. O projeto segue sua tramitação junto à Câmara de Vereadores. Além disso, no último dia 28 o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação nº 120/2021, que estimula os magistrados a priorizarem a solução das controvérsias à autocomposição tributária entre as partes, seja por meio de transação, negociação direta ou mediação, como uma possível solução para o enfrentamento do contencioso judicial tributário.
No âmbito federal, o momento para abordagem do tema se mostra oportuno, visto que a Administração Pública tem se revelado mais aberta para medidas alternativas como se verifica da proposição do instituto de transação tributária no âmbito federal através da Lei nº 13.988/2020. Certamente, a transação inaugurou um novo capítulo nas relações de consenso entre o Fisco e o contribuinte, representando um avanço para soluções autocompositivas. No entanto, a modalidade abrange apenas débitos em dívida ativa, em que já está instaurado o contencioso, não permitindo espaço para uma fase administrativa e/ou pré-litígio tributário, de discussões mais abertas para o consenso.
Logo, o foco que aqui se propõe, a mediação na fase do “pré-lançamento tributário”, se justifica como grande potencial para resolução de conflitos, sobretudo como meio de resolução de casos complexos em que as soluções de consulta não são tão efetivas e que ensejam um maior conhecimento da operação do contribuinte sob um viés mais técnico (exemplo: NCM de mercadoria, classificação de serviços, intangíveis e outras operações que reproduzam alguma fonte de valor), através da possibilidade de elucidação dos fatos e cooperação das partes de forma prévia ao litígio.
Estamos certos de que normativas isoladas, por si só, não são suficientes para gerar uma mudança comportamental dos agentes. No entanto, já demonstram uma grande iniciativa para disseminação da cultura do consenso em matéria tributária. E, com os corretos incentivos, poderão contribuir para construção de um ambiente de segurança jurídica, onde a negociação se torna possível, com garantias mínimas às partes e de estímulo à resolução consensual em matéria tributária.
[1] Nos dias 20 e 21 de maio de 2021, a Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), a Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (ABRASF) e a Prefeitura de Porto Alegre realizaram o 1º Seminário Internacional sobre Mediação Tributária, oportunidade em que foram abordados diversos desafios e soluções para instituição da mediação na seara tributária.
[2] Parágrafo único do artigo 1º da Lei nº 13.140/2015
[3] Conferir: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/02/09/porto-alegre-tera-projeto-piloto-de-mediacao-tributaria.ghtml
Isabella Fochesatto Panisson é coordenadora da área tributária da JP Leal Advogados, mestranda em Direito Tributário pela FGV-SP, associada do Women in Law Mentoring Brazil (WLM) e membro da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB-RS e do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim).