Por Isabella Nunes
O processo de recuperação judicial é destinado para empresas e empresários viáveis em dificuldades financeiras e tem como objetivo permitir o fôlego financeiro para a reestruturação do passivo, mantendo a atividade econômica e os empregos, regulamentado pela Lei 11.101/2005.
Quando se trata do agronegócio e, principalmente, do produtor rural, sua legitimidade para ingresso com a recuperação judicial restou expressa a partir da reforma dada pela Lei 14.112/2020.
Em contrapartida, essa reforma da Lei promoveu a exclusão de algumas derivações do título denominado Cédula de Produto Rural (“CPR”).
A CPR é um dos principais títulos de crédito do agronegócio, emitido por produtores rurais para financiar a produção agropecuária. A CPR pode ser física, baseando-se na entrega futura de produtos agrícolas, ou financeira, com pagamento em dinheiro.
O texto legal apresenta algumas hipóteses para que efetivamente ocorra a exclusão da CPR do processo recuperacional. Confira:
“Art. 11. Não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial os créditos e as garantias cedulares vinculados à CPR com liquidação física, em caso de antecipação parcial ou integral do preço, ou, ainda, representativa de operação de troca por insumos (barter), subsistindo ao credor o direito à restituição de tais bens que se encontrarem em poder do emitente da cédula ou de qualquer terceiro, salvo motivo de caso fortuito ou força maior que comprovadamente impeça o cumprimento parcial ou total da entrega do produto. (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020)”
Da simples leitura do artigo, é possível entender que para que haja a exclusão da CPR da recuperação judicial, esta deve preencher os seguintes requisitos:
- possuir liquidação física;
- possuir antecipação do preço ou operação de barter,
e ainda,
- o impedimento de entrega dos produtos agrícolas não poderá ter se dado por caso fortuito ou força maior.
Isto é, a CPR somente estará de fato excluída dos efeitos da recuperação judicial quando houver o preenchimento dos requisitos expressamente dispostos por lei. De modo que, não é apenas pela nomenclatura de “Cédula de Produto Rural” que todo crédito lastreado em CPR deve ser excluído do procedimento recuperacional.
Diferentemente do que prevê a Lei de Recuperação Judicial, onde em regra “estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido”, esse não é o posicionamento adotado pelo judiciário. É possível encontrar diversos julgados pelos quais tem-se entendido de forma indiscriminada pela exclusão da CPR tão somente pela nomenclatura do título, sem que seja possibilitado ao produtor rural a demonstração a inexistência das ressalvas legais para exclusão do título do procedimento recuperacional.
Existem casos em que a CPR não possui liquidação física, em outros, sequer existiu antecipação de valores ou a operação de troca dos insumos para o plantio. Inclusive, acontece de a CPR ser emitida tão somente como um título de garantia à operação de compra e venda de grãos pactuada entre o produtor rural e o credor.
Ainda assim na esmagadora maioria dos casos, o judiciário não tem permitido sequer que o devedor demonstre que a CPR não se enquadra nas hipóteses legais para ser excluída da recuperação judicial, excluindo-a tão somente pela nomenclatura dada ao título.
Com isso, esses credores têm conseguido prosseguir com atos expropriatórios dos produtos agrícolas cultivados pelo produtor rural. Fato beneficia esse credor que recebe seu crédito em detrimento de todos os demais credores, expropriando o principal ativo do produtor rural e podendo minar as chances deste se reestruturar.
A exclusão automática e indiscriminada da CPR da recuperação judicial, sem a devida análise do caso concreto e o devido enquadramento nas hipóteses da lei, trará efeitos adversos significativos ao processo de recuperação judicial, incluindo insegurança jurídica, prejuízos aos produtores rurais, distorções no mercado de crédito e principalmente, redução da efetividade da recuperação judicial.
Para que o processo de recuperação judicial atinja seu objetivo primordial, é crucial que o Judiciário adote uma abordagem mais contextualizada, considerando as especificidades de cada caso para garantir a segurança jurídica e eficiência a recuperação judicial, incluindo e tutelando os direitos de todos sujeitos envolvidos no procedimento e não somente o credor decorrente de um instrumento com nomenclatura de CPR.
Uma análise criteriosa do texto legal em conjunto com as especificidades do caso concreto contribuirá para a eficácia do processo de recuperação judicial com preservação da atividade econômica e a estabilidade de todo o setor agropecuário.
Isabella Nunes, advogada, coordenadora jurídica na área de Reestruturação, Recuperação Judicial e Agronegócio na DASA Advogados.