Opinião

A indignação seletiva e o antissemitismo moderno

Padecemos dos mesmos vícios experimentados por nossos ancestrais

8 de junho de 2021

Por José Luis Oliveira Lima e Daniel Kignel*

Artigo publicado originalmente no Estadão

O século XX foi um período turbulento para a humanidade. Enquanto, de um lado, experimentamos avanços científicos expressivos, de outro a intolerância étnico-religiosa e a ignorância resultaram em tragédias de proporções até então inimagináveis, inclusive em um dos episódios mais vergonhosos de nossa história.

O antissemitismo, que é tão antigo quanto o próprio judaísmo, se tornou política pública de uma das nações mais importantes da Europa. O que começou em 1935 na Alemanha Nazista com a edição das Leis de Nuremberg, descambou para o extermínio sistemático de judeus por todo o continente, resultando na morte de 6 milhões de homens, mulheres e crianças, sem se considerar outras minorias, como homossexuais, ciganos, deficientes e opositores políticos.

Após os traumas decorrentes desses eventos e de tantos outros que permearam os anos 1900, era de se esperar uma evolução coletiva, acompanhada de um reconhecimento da necessidade premente de mudanças profundas em nosso modo de pensar e agir. Mas cá estamos, no ano de 2021, padecendo dos mesmos vícios experimentados por nossos avós, bisavós e tataravós, apenas com uma nova roupagem.

A perseguição feita pela Turquia aos curdos ultrapassou há muito o limite do aceitável. Os uigures, por sua vez, são alvo de repressão constante do governo chinês. Bashar al-Assad, ditador sírio, mantém há mais de dez anos uma nação inteira refém de uma guerra interminável. E os homossexuais, em diversos países, são considerados párias sociais, correndo o risco de prisão ou mesmo de execução única e exclusivamente por conta de sua orientação sexual.

No entanto, tais fatos, por mais conhecidos que sejam do grande público, deixaram de causar qualquer sentimento de reprovação. É impressionante constatar quanto o mundo parece ter se acostumado à perseguição a minorias étnicas e religiosas. É como se o sofrimento desses povos não atingisse os índices necessários para gerar qualquer indignação digna de nota.

Apenas um conflito, atualmente, consegue monopolizar a atenção mundial: a questão israelopalestina. Bastaram dez dias de guerra entre o Estado de Israel e o grupo terrorista Hamas, e toda aquela indignação, profundamente adormecida, finalmente achou um lugar para onde pudesse escoar.

Os indignados seletivos puderam voltar a classificar Israel como uma nação que promove o Apartheid, mesmo sabendo que quase 20% da população do país é composta por árabes, que possuem todos os seus direitos civis assegurados, inclusive assentos nos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e nas Forças Armadas. Puderam voltar a definir a Faixa de Gaza como um campo de refugiados, mesmo sabendo que o enclave é governado pelo Hamas desde o ano de 2007, e que o grupo prefere reinvestir todo o valor doado por entidades de ajuda humanitária na compra de mísseis, a garantir aos palestinos seus direitos mais básicos. Puderam voltar a dizer que Israel é uma nação genocida, ignorando o fato de que mais de 4 mil foguetes foram lançados pelo Hamas contra o país, os quais não tinham como destino alvos militares. O objetivo, declarado abertamente, era atingir escolas, hospitais e edifíciosresidenciais. O objetivo era atingir a população israelense.

Em paralelo, a escalada assustadora de ataques contra judeus em países que estão a milhares de quilômetros de Israel alcançou índices que fariam Goebbels e Himmler aplaudirem em pé. Episódios em lugares como Estados Unidos e Inglaterra chocaram a comunidade judaica mundial, mas não houve outras adesões. Toda a indignação à disposição já estava voltada ao que acontecia no Oriente Médio.

No Brasil, temos nosso próprio exemplo de indignação seletiva. Há uma comissão no Congresso Nacional intitulada Frente Parlamentar Mista pelos Direitos do Povo Palestino, a qual, curiosamente, não tem qualquer interesse em resguardar os direitos do povo palestino. Se assim fosse, a Frente Parlamentar agiria constantemente para tentar fazer com que o Hamas pare de atirar homossexuais do alto de telhados; que garanta à população de Gaza acesso à saúde e à educação; que garanta a liberdade de expressão, a liberdade religiosa e eleições livres em seu território.

Mas a Frente Parlamentar Mista pelos Direitos do Povo Palestino jamais questionou o Hamas. A indignação dos Congressistas nunca esteve realmente direcionada ao sofrimento de uma população oprimida por seus líderes, mas sim à atuação do Estado de Israel nos momentos em que ocorre uma escalada de violência na região, oportunidade em que o grupo passa a emitir notas de repúdio dignas de pena.

Muitos escondem seu viés antijudaico atrás de uma cortina transparente de antissionismo. Os judeus são a única minoria no mundo que não tem autonomia para definir o que constitui ou não um ataque contra a sua existência, pois parece haver sempre uma justificativa para a atuação daqueles que não aceitam sua autodeterminação enquanto povo, que tem em Israel seu lar. Mas é chegada a hora de chamar as coisas pelo seu nome. A indignação seletiva de muitos é o antissemitismo moderno.

 *José Luis Oliveira Lima, advogado criminalista, membro do Instituto dos Advogados de São Paulo e do Conselho do Innocence Project Brasil

 *Daniel Kignel, advogado criminalista, membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

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