Por Estela Aranha e Paula Sion*
Artigo publicado originalmente no Estadão
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), assim como a lei europeia que a inspirou, excluiu de seu escopo as atividades de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado e atividades de investigação e repressão de infrações penais, que deverão ser objeto de lei específica.
Bem por isso, a Câmara dos Deputados instituiu uma Comissão de Juristas que foi encarregada de propor um anteprojeto sobre o tema e apresentou sua proposta na última dia 5.
A aprovação desse novo diploma legal é essencial para que os direitos e garantias processuais que são válidos na vida off line também sejam válidos para a vida online e para o uso de recursos tecnológicos pelo Estado.
Hoje não só a tecnologia permite a mineração de dados das mais variadas fontes – sejam elas legítimas ou não – como também os mais variados cruzamentos de dados para inferências sobre indivíduos, além da formação de dossiês sobre pessoas em sistemas e arquivos, à míngua de qualquer controle.
A regra de que é necessária previsão legal, importante razão e legítimo interesse público para a interferência em um direito fundamental, está sendo lida de modo invertido pelos órgãos de segurança pública e de persecução penal: tudo que não é expressamente vedado parece que é permitido.
Já existe a proteção constitucional explícita, do direito à privacidade, e implícita, do direito de autodeterminação informacional, fundante da proteção de dados, conforme reconheceu o STF em liminar concedida na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6387. Mas é necessário um diploma legal para balizar de forma expressa os limites da atuação estatal nesse campo.
Quando falamos da persecução penal, que tem por objetivo a busca da verdade real, se faz necessária sua ponderação com as garantias fundamentais. A Constituição garante princípios que conformam o processo penal para que se impeça o arbítrio estatal, entre eles: o contraditório e ampla defesa, a igualdade de partes, o estado de inocência, o devido processo legal e a proporcionalidade. Vale lembrar que no processo penal nem mesmo a busca da verdade permite violar a esfera intocável da dignidade humana, como ressalta o jurista Luis Greco em sua obra.
Sem as garantias da proteção de dados pessoais, estamos vendo, no âmbito estatal, o crescimento cada vez maior de aparatos tecnológicos e o uso de técnicas que permitem a devassa. São exemplos disso o acesso aos dados sem autorização judicial, o compartilhamento dos mesmos sem previsão legal, a formação indiscriminada de dossiês e o uso sem critério de profiling, técnica de análise comportamental que ajuda no reconhecimento de características de criminosos.
Isso pode levar a um estado permanente de vigilância estatal em que a assimetria de poder seja tão grande que tornará impossível a igualdade entre as partes, tal a disparidade de armas processuais.
O uso desse tipo de tecnologia vai do reconhecimento facial ao recém-criado Córtex, sistema de vigilância estatal recentemente exposto por uma reportagem. São numerosos os sinais de que está sendo criado um aparato para o registro permanente de atividades de todos os cidadãos, suspeitos ou não. O resultado disso é a vigilância em massa, desproporcional, sem fundamento e sem controle. Afinal, não se sabe onde esses dados são armazenados, por quanto tempo, como podem ser usados, quem pode acessar e nem para qual finalidade.
Um outro aspecto a ser ressaltado diz respeito à importância da separação informacional de poderes, em especial entre órgãos de segurança e justiça. Esse princípio basilar da democracia também deve ser alçado ao âmbito da proteção de dados, com o estabelecimento de regras claras para o intercâmbio de informações entre órgãos públicos.
O tratamento de dados por qualquer ente da administração pública deve se dar no estrito âmbito das atribuições e competências, evitando-se um poder totalitário, contrário às regras democráticas.
O grande desafio da nova lei é estabelecer um sistema de check and balances, encontrando um ponto de equilíbrio entre dois importantes aspectos: de um lado, a necessidade estatal de promover a segurança pública e de buscar a verdade real no âmbito de um processo penal e, de outro, a proteção da dignidade humana e dos direitos fundamentais, notadamente o direito constitucional à intimidade e privacidade.
*Estela Aranha é presidente da Comissão de Proteção de Dados e Direito à Privacidade da OAB/RJ
*Paula Sion é advogada criminalista, sócia em Cavalcanti, Sion e Salles Advogados, membro da Comissão de Direito Penal da OAB/SP e coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Proteção de dados no âmbito desta comissão