Por Vera Chemim*
Artigo publicado originalmente no Estadão
Logo após a recente decisão do Supremo Tribunal Federal em ratificar a obrigatoriedade da vacinação já prevista em legislação infraconstitucional, o senador Ângelo Coronel, do PSB-BA, apresentou quase que simultaneamente, o Projeto de Lei nº 5.555/2020 propondo a criminalização da não vacinação e da propagação de notícias falsas sobre o Plano Nacional de Imunização e da eficácia das vacinas a serem distribuídas à população.
O referido projeto trata da criminalização de conduta omissa dos pais de filhos menores que não forem vacinados, tanto em campanhas de vacinação, quanto em situação de emergência de saúde pública e da não vacinação de adultos, além de propagação de notícias falsas sobre as vacinas do Programa Nacional de Imunização ou de sua eficácia, com penas de reclusão de 1 a 3 anos e de 2 a 8 anos e multa, respectivamente.
Ademais, se tais condutas forem de um agente público, as penas poderão ser aplicadas em dobro, além das punições previstas na Lei de Improbidade Administrativa.
A despeito dos argumentos apresentados pelo senador e que são convincentes (a queda do número de vacinações em geral e a consequente ameaça à saúde da comunidade), a obrigatoriedade da vacinação sob pena de o agente ser criminalizado desafia os princípios da liberdade individual de escolha de um lado e de outro, do direito à saúde e à vida da comunidade, todos previstos no artigo 5º, caput e Incisos IV, VIII e IX, 6º e 196 da Carta Magna e que serão novamente ponderados para que possa prevalecer o mais importante nesse tipo de conjuntura.
Os princípios, diferentemente das regras não se sujeitam no direito constitucional, à regra do “tudo ou nada”, como ocorre com as normas infraconstitucionais, tais como as previstas em qualquer legislação ordinária ou mesmo complementar (código civil penal, etc, além da legislação extravagante, como as leis que regem determinado tema, como por exemplo, a lei de drogas e outras).
No caso das regras, o magistrado, ao analisar um caso concreto irá aplicar e validar uma determinada norma em detrimento de outra, que naquele caso será considerada inválida.
No que diz respeito aos Princípios Constitucionais esculpidos expressamente, nos artigos 5º ao 17º da Carta Magna, assim como no artigo 196, além de outros dispositivos espalhados no texto constitucional de forma implícita há que se dar um peso a cada um deles por meio da ponderação (de acordo com Ronald Dworkin e Robert Alexy) e nomear aquele que for mais conveniente para cada caso em particular, sem, contudo, invalidar os demais princípios.
Portanto, aquela ponderação contrapõe o direito individual (de optar pela não vacinação) ao direito coletivo (à saúde e à vida da comunidade), todos reconhecidos como Princípios Fundamentais na Constituição Federal de 1988.
Sendo assim, criminalizar uma conduta nesse sentido parece ir “de” (contra) encontro ao Estado Democrático de Direito, tanto é que o STF decidiu por aquela obrigatoriedade, no sentido de que aquele que não se vacinar, poderá sofrer as restrições já previstas na antiga Lei nº 6.259/1975 e na recente Lei nº 13.979/2020, essa última tratando especificamente da pandemia do coronavirus.
As restrições remetem à obrigatoriedade de apresentação de carteira de vacinação para matrícula dos filhos em escolas públicas e da mesma exigência para receber o salário-família por exemplo.
O que equivale a afirmar que a vacinação, embora fundamental à manutenção da saúde pública não poderá ser “forçada”, conforme decisão daquela Corte, ratificando a tese de que os princípios constitucionais (que são os direitos e deveres individuais e coletivos) sofrem uma ponderação, embora nunca sejam considerados inválidos em qualquer situação.
Partindo do pressuposto constitucional de que, os direitos fundamentais individuais e coletivos não são absolutos, a sua relativização é limitada pelos deveres fundamentais igualmente previstos naqueles dispositivos constitucionais e de modo especial, no artigo 5º da Carta Magna.
Assim, o direito individual de escolha é limitado pelo dever de zelar pela saúde e vida da comunidade e vice versa; o direito à saúde e à vida deve também respeitar a liberdade individual de escolha, cujo equilíbrio consistiu na essência da decisão daquela Corte.
A partir dessa análise preliminar é possível entender que a intenção de criminalizar a não vacinação (com exceção dos pais de filhos menores) vai eliminar totalmente o direito individual de escolha do cidadão disposto no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 e tornar absoluto o direito coletivo à saúde e à vida.
Se o referido Projeto de Lei for aprovado nas duas Casas Legislativas, certamente, será objeto de uma futura Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ou mesmo, de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, a julgar pelo fato inequívoco de que os direitos fundamentais individuais constituem “cláusula pétrea”, conforme previsão do Inciso IV, do § 4º, do artigo 60 da Carta Magna.
Diante da grave crise sanitária, o STF poderá usar da mutação constitucional (modificação “informal” de uma norma constitucional, uma vez que a “formal” remete à Emenda Constitucional no âmbito do Poder Legislativo) para interpretar a referida norma constitucional, emprestando-lhe uma nova compreensão, sem modificar a sua redação.
Quanto à propagação de notícias falsas sobre o PNI e da eficácia das vacinas a serem disponibilizadas aos cidadãos, convém lembrar que:
– o Decreto-Lei nº 4.766/1942 já tipifica em seu artigo 30, que divulgar noticia que possa gerar pânico ou desassossego público gera uma pena de reclusão de seis meses a um ano; e
– a Lei de Contravenções Penais prevê em seu artigo 41, que provocar alarme, anunciando desastre ou perigo inexistente, ou praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto gera uma prisão simples de 15 dias a seis meses, mais multa correspondente.
– já existe um projeto de lei tramitando na Câmara dos Deputados (PL-6812/2017, no qual também foi apensado o PL-9554/2018 que pretende acrescentar o artigo 287-A ao Código Penal) que trata igualmente de tipificação criminal de divulgação ou compartilhamento de informação falsa ou incompleta na rede mundial de computadores (Internet), com detenção de 2 a 8 meses e multa.
Independentemente do tema específico de saúde pública, do qual trata o presente Projeto de Lei nº 5.555/2020, recentemente apresentado ao Senado Federal, o Poder Legislativo precisará debater o presente tema, levando em conta, além do mérito, a questão das fake news que já se encontra disciplinada de certa forma, nas legislações acima apresentadas, para que não se edite uma lei que venha a confundir ainda mais o ordenamento jurídico e especialmente o penal.
*Vera Chemim, advogada constitucionalista