Opinião

A contratação de serviços advocatícios pela Administração Pública

Jogo de contratar com a Administração Pública não é simples e deve ser sempre jogado com muita cautela

2 de agosto de 2021

Por Matheus Bene Cannizza 

Artigo publicado originalmente na ConJur 

Não há dúvidas de que quando a regra do jogo é clara, tudo fica mais fácil. Fica mais fácil para quem joga saber se cometeu ou não alguma penalidade e fica mais fácil para quem está com as rédeas do jogo nas mãos decidir se determinado fato deve ou não ser apenado.

Mas nem sempre as regras são claras e nem sempre os fatos encontram correspondência imediata naquilo que mandam as regras. Ou seja, nem sempre é atividade fácil saber se determinado fato é ou não hipótese vedada por alguma regra.

Com o jogo do Direito não é diferente: há casos fáceis de serem julgados e casos difíceis de serem julgados. E a dificuldade muitas vezes é verificada pela falta de correspondência direta e clara entre o fato e a norma (relação “fato x norma”), o que, por sua vez, tem origem no processo de criação das normas. Como ensina Herbert L.A. Hart, é impossível de se prever nas normas todas as combinações de circunstâncias que podem vir a acontecer [1].

Ainda para Hart, os casos fáceis se resolvem com base na mera subsunção do fato à norma, bastando se socorrer ao silogismo para conectar o caso concreto à norma correspondente para que se chegue à conclusão adequada.

Já nos casos difíceis (hard cases), esse silogismo entre o fato e o texto normativo não é tão claro, ou muitas vezes, nem sequer existe. Hart diz que esses casos ficam na “zona de penumbra” e são resolvidos pela discricionariedade judicial [2].

Pois bem. Agora vamos ao tema do presente artigo, que envolve o jogo da contratação com a Administração Pública. A regra de ouro é: a Administração Pública só poderá contratar serviços e adquirir bens após a realização de prévio processo licitatório.

O objetivo dessa regra é o de salvaguardar a impessoalidade e a isonomia dos possíveis interessados e o seu racional é simples: buscar proposta mais vantajosa levando em consideração, muitas vezes, a melhor técnica e o menor preço.

Quando essa regra não é observada, as partes envolvidas na contratação direta sem observância dos critérios previstos na Lei nº 8.666/1993 (Lei de Licitações) podem incorrer em ato de improbidade administrativa, o que pode resultar na aplicação de uma série de penalidades.

Mas, como toda boa regra, existem exceções e uma delas diz respeito exatamente à contratação direta de serviços de advocacia por inexigibilidade de licitação, o que está previsto no artigo 13, V [3], e 25, II [4], ambos da Lei de Licitações.

Ocorre que essa exceção costuma ser interpretada pelos aplicadores do Direito com certo enviesamento. Muitos são contra e outros tantos a favor (um Fla-Flu no tema de contratos públicos).

Por isso, embora exista razoável consenso sobre a possibilidade de contratação direta de serviços de advocacia pela Administração Pública (respeitados os requisitos legais [5], que devem ser verificados caso a caso), é certo que existe uma quantidade muito grande de demandas no Judiciário e nos Tribunais de Contas que discutem a regularidade das referidas contratações, com desfechos diversos.

Em razão disso, o Conselho Federal da OAB propôs ação direta de constitucionalidade (ADC), pleiteando o reconhecimento da constitucionalidade dos dispositivos da Lei de Licitações, que, mesmo autorizando a contratação direta de advogados pela Administração Pública por inexigibilidade, dão azo à questionamentos em juízo pelo país a fora.

Referida ADC começou a ser julgada pelo Plenário Virtual em outubro de 2020, sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso. Em seu voto, ele considerou constitucionais os referidos dispositivos. O ministro ressalvou que, além dos requisitos legais, a Administração Pública deve comprovar: 1) a inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do poder público; e 2) a cobrança de preço compatível como praticado pelo mercado.

O ministro relator foi acompanhado pela maioria dos seus pares [6]. No entanto, o ministro Gilmar Mendes pediu destaque (retirada do processo da pauta) e o caso foi novamente pautado para julgamento no dia 16 de junho, juntamente com mais dois recursos extraordinários [7], sob repercussão geral, que versam sobre mesmo tema. Como ao final da sessão de julgamento não houve tempo para o julgamento da ADC, a ação será pautada em nova data a ser definida.

A expectativa é a de que os demais ministros votem pela constitucionalidade dos referidos dispositivos da Lei de Licitações, na linha do voto do ministro relator.

Mas, uma vez mantidos os requisitos suplementares propostos pelo ministro Luís Roberto Barroso, acreditamos que estar-se-á resolvendo um problema e criando outro. Isso porque, nos moldes propostos, haverá um enorme e desproporcional ônus de prova para concluir: 1) que a contratação foi feita pelo “valor de mercado”; e 2) pela inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do poder público.

Afinal, o que seria “valor de mercado”? Como aferir se a contratação foi feita com valor considerado dentro do que se endente por “valor de mercado”? E mais: como comprovar a inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do poder público? Não parece ser algo que passará indene de controvérsias.

Com a intenção de resolver a controvérsia que toma conta do assunto em questão, foi editada pelo Legislativo a Lei nº 14.133/2021 [8], nova Lei de Licitação e Contratos Administrativos, excluindo do texto normativo a exigência do requisito da singularidade do serviço [9] para a contratação direta de advogados (de acordo com o artigo 74, inciso III, alínea “e” [10], da Lei nº 14.133/2021).

Diante dessa novidade, questiona-se: a contratação direta de serviços de advocacia por inexigibilidade de licitação poderia ocorrer para todo e qualquer serviço? Acredita-se que a resposta seja negativa. Isso porque, para viabilizar a contratação direta por inexigibilidade de licitação, há de se ter presente o requisito da inviabilidade de competição. Sendo a grande maioria dos atos praticados pela advocacia atos comuns, o que se verifica nesse caso é o contrário da inviabilidade de competição.

Por outro lado, como levar a cabo processo competitivo se cada advogado possui habilidade e técnicas próprias que poderiam cumprir igualmente com o objeto da contratação direita? Não será tarefa fácil estabelecer critérios objetivos para a escolha.

Possivelmente, na legítima tentativa de simplificar e desburocratizar o processo de contratação direta de advogados, a nova legislação abrirá caminhos para novas demandas questionando contratações diretas. O que, novamente, levará à necessária intervenção do Poder Judiciário para superar casos como esses em questão.

Por isso, acredita-se que mesmo sendo julgada procedente a ADC, reconhecendo a constitucionalidade dos artigo 13, V, e artigo 25, II, da Lei nº 8.666/93, e mesmo com a vigência da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que tentou simplificar contratações dessa natureza, dificilmente a contratação direta de serviços advocatícios pela Administração Pública seguirá indene de questionamentos.

Com lei nova ou sem lei nova, com regras muito ou pouco claras, fato é que o jogo de contratar com a Administração Pública não é simples e deve ser sempre jogado com muita cautela.

[1] “[…] Os legisladores humanos não podem ter tal conhecimento de todas as possíveis combinações de circunstâncias que o futuro pode trazer.” e “[…] esta incapacidade de antecipar acarreta consigo uma relativa indeterminação de finalidade […]” (in. HART. Herbert L. A. O conceito de direito. 3ªed. Fundação Calouste Gulbenkian. p.141).

[2] “[…] Haverá pontos em que o direito existente não consegue ditar qualquer decisão que seja correcta, e, para decidir os casos em que tal ocorra, o juiz deve exercer os seus poderes de criação do direito. Mas não deve fazer isso de forma arbitrária […]”.(in. HART. Herbert L. A. O conceito de direito. 3ªed. Fundação Calouste Gulbenkian. p.366).

[3] “Artigo 13 – Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:
[…]
V – patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas”.

[4] “Artigo 25 – É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial
[…]
II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação”.

[5] Os requisitos são os seguintes: 1) serviço técnico e especializado de natureza singular; 2) profissionais com notória especialização; 3) existência de processo administrativo prévio à contratação.

[6] Acompanharam o Ministro Relator os Ministros: Marco Aurélio Mello, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli.

[7] Recursos Extraordinários n°s 610.523 e 656.558

[8] Publicada em 1º.4.2021.

[9] Entende-se por serviços singulares: “[…] São singulares todas as produções intelectuais, realizadas isolada ou conjuntamente – por equipe – sempre que o trabalho a ser produzido se defina pela marca pessoal (ou coletiva) expressada em características científicas, técnicas ou artísticas, importantes para o preenchimento da necessidade administrativa a ser suprida’ (in. Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed. 2013. p. 553.

[10] “Artigo 74 – É inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de:
(…)
III – contratação dos seguintes serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação:
(…)
e) patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas”.

*Matheus Bene Cannizza é advogado no Diamantino Advogados Associados.

 

 

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