Opinião

A compensação na recuperação judicial

Análise envolve desafiadora tarefa de resolver um conflito de interesses

29 de outubro de 2021

Por Mariana Negri e Pâmela Silveira Leite

Artigo publicado originalmente no Jota

A aplicabilidade da compensação na recuperação judicial é um tema polêmico e controvertido, que merece atenção diante da sua grande utilidade prática.

A compensação é uma causa extintiva de obrigações, prevista no art. 368 do Código Civil, pela qual duas pessoas, que figuram reciprocamente como credoras e devedoras, têm as suas obrigações extintas até onde se compensarem.

Como forma de garantir o adimplemento, esse “encontro de contas” elimina a necessidade de se realizar pagamentos recíprocos, “dispensáveis”, nas palavras de Orlando Gomes[1]. Com efeito, “é mais simples e econômico evitar um pagamento dúplice, quando entre as mesmas pessoas existem diversas relações de débito e crédito. Por isso essas relações recíprocas devem extinguir-se, na medida dos valores que podem ser compensados”[2].

À luz dos artigos 368 e 369 do Código Civil, é possível interpretar que a compensação se opera de forma automática, como ocorre, nesse aspecto, no Direito Francês[3]. Ainda, a compensação pode ser legal, que se subordina a requisitos legais[4], ou voluntária/convencional, em que as partes podem flexibilizar os requisitos legais para autorizar a extinção de obrigações recíprocas.

São essas as premissas que devem nortear a análise da aplicabilidade da compensação na recuperação judicial. O tema, porém, é objeto de controvérsias, na medida em que o processo de recuperação se submete a um regime jurídico especial, regido por lei própria (Lei n. 11.101/2005 – LFR), que tem como pilares os princípios da preservação da empresa (art. 47, da LFR) e do tratamento paritário dos credores (par conditio creditorum).

No anseio de preservar esses princípios, comumente se questiona sobre a compensação de débitos e créditos recíprocos, principalmente diante da possibilidade indesejada de ocorrer favorecimento pessoal a um determinado credor.

Além disso, muito se debate sobre a compatibilização dos dispositivos que tratam da compensação no Código Civil e na LFR. Nesse ponto, há que se destacar que a LFR é omissa acerca da possibilidade de se efetivar a compensação em caso de recuperação judicial, já que apenas disciplina a compensação na falência, no artigo 122[5].

Nesse cenário de incertezas, torna-se imprescindível a análise da jurisprudência sobre a possibilidade de aplicação da compensação na recuperação judicial.

O Tribunal de Justiça de São Paulo já manifestou entendimentos sobre o tema nos seguintes sentidos: (i) admitindo a compensação, ao fundamento principal de que sua aplicação é automática; se opera de pleno direito, independentemente de decisão judicial, com fundamento no Código Civil e (ii) rejeitando a compensação, por implicar violação ao princípio do par conditio creditorum e ao artigo 49, da LFR.

Nesse último caso, verifica-se um certo controle por parte do Poder Judiciário na aplicação da compensação na recuperação judicial, que acaba por avaliar as particularidades do caso concreto, principalmente: a data de distribuição do pedido de recuperação judicial; a data dos fatos geradores das obrigações compensáveis e se foram preenchidos os requisitos da compensação (legal ou convencional).

As situações enfrentadas pelo Poder Judiciário são diversas.

Na hipótese de os fatos geradores das obrigações (débito e crédito) e a compensação se operaram antes do pedido de recuperação judicial, a jurisprudência tem entendido que a compensação ocorreu de forma automática e que as obrigações compensáveis já estavam extintas no momento do pedido de recuperação judicial, por aplicação dos artigos 368 e 369 do Código Civil, não sendo permitida a restituição de valores[6].

No entanto, quando os fatos geradores das obrigações ocorrem antes do pedido de recuperação, mas o preenchimento dos requisitos da compensação se efetivam depois, a jurisprudência tem considerado que a compensação não é possível, porque prejudica interesse de terceiros – a coletividade dos credores (par conditio creditorum) –, o que é vedado pelo artigo 380, do Código Civil[7].

Já quando os fatos geradores das obrigações e o preenchimento dos requisitos da compensação ocorrem depois do pedido de recuperação judicial, tem-se que o crédito não se submete à recuperação judicial, por força do art. 49, da LFR, e, como consequência, tem sido reconhecido pela jurisprudência que a compensação se opera automaticamente[8]. Contudo, essa posição também pode sofrer influência do artigo 66, da LFR, que veda a possibilidade de alienação ou oneração dos ativos permanentes da empresa em recuperação, no intuito de preservar a empresa à luz do art. 47 da LFR.

Há que se observar, ainda, que uma das grandes razões para o indeferimento da compensação é o não preenchimento dos requisitos previstos no art. 369, do Código Civil, principalmente quando as dívidas não forem líquidas e certas e quando as dívidas recíprocas apresentam naturezas distintas[9].

Por fim, como bem observado pelo desembargador Alexandre Lazarini, da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, a compensação somente será lícita se ambos os créditos forem anteriores ao pedido de recuperação ou se ambos forem posteriores ao pedido, sob pena de configuração de fraude a credores[10].

Como se vê, a análise da possibilidade de compensação na recuperação judicial envolve a desafiadora tarefa de resolver um conflito de interesses – interesse social x interesse individual de um credor – e, para que se atinja o objetivo de proferir decisões adequadas em um processo que importa em renegociação de dívidas, é imprescindível a avaliação do contexto fático particular de cada caso concreto.

[1] GOMES, Orlando, Obrigações, 17ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 160.

[2] NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade Nery, Código Civil Comentado, 6ª ed., São Paulo: RT, 2008, p. 46.

[3] Para Caio Mario da Silva Pereira, “na sua sistemática [do Código Civil Brasileiro] filiou-se à escola que se poderia dizer francesa, da compensação legal ipso Iuri (…).”  (PEREIRA, Caio Mario, Instituições de Direito CivilVolume II – Teoria Geral das Obrigações, 25ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 244).

Determina o 1.290, do Código Civil Francês: “La compensation s’opère de plein droit par la seule force de la loi, même à l’insu des debiteurs”.

[4] “Além da reciprocidade e pessoalidade entre as dívidas, o art. 369 estabelece que a compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis.” (SACRAMONE, Marcelo Barbosa, Compensação de Débitos na Recuperação Judicial, In: MENDES, Bernardo Bicalho de Alvarenga (Coord.), Aspectos polêmicos e atuais da lei de recuperação de empresas, Belo Horizonte: D’Plácido, 2016, p. 455)

[5] De acordo com o art. 122, na falência a compensação se efetiva com preferência sobre os demais créditos. Há, portanto, uma hipótese de exceção do princípio da paridade entre os credores. Vejamos: “Art. 122: Compensam-se, com preferência sobre todos os demais credores, as dívidas do devedor vencidas até o dia da decretação da falência, provenha o vencimento da sentença de falência ou não, obedecidos os requisitos da legislação civil”.

[6] No Agravo de Instrumento n. 2024229-92.2020.8.26.0000, o TJSP decidiu que antes mesmo do ajuizamento da recuperação judicial pelas agravadas, já havia dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis, de modo que é perfeitamente possível a compensação dos valores, até onde se compensarem. (Relator Sérgio Shimura; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 05/04/2021; Data de Registro: 05/04/2021). No mesmo sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2201470-87.2019.8.26.0000; Relator: Gilson Delgado Miranda; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 12/11/2019; Data de Registro: 12/11/2019.

[7] No Agravo de Instrumento n. 2211765-52.2020.8.26.0000, o TJSP afastou a compensação em razão da omissão legal e de o crédito ser anterior ao pedido de recuperação. (Relator: J. B. Franco de Godoi; 23ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 16/12/2020; Data de Registro: 16/12/2020).

Nos Embargos de Declaração n. 1068439-19.2015.8.26.0100, o TJSP decidiu por afastar a compensação em razão de o crédito ser anterior à recuperação judicial (Relatora: Clara Maria Araújo Xavier; 8ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 04/03/2020; Data de Registro: 04/03/2020)

Inclusive, no Agravo de Instrumento n. 2025775-85.2020.8.26.0000, o TJSP declarou nula cláusula de plano de recuperação judicial que previa a compensação irrestrita entre créditos da recuperanda e débitos dos credores sujeitos à recuperação (Relator: Araldo Telles; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 18/12/2020; Data de Registro: 21/12/2020).

[8] No Agravo de Instrumento n. 2149453-79.2016.8.26.0000, o TJSP admitiu a compensação considerando que a prestação dos serviços e os pagamentos decorrentes de contrato bilateral de prestação continuada ocorreram após o pedido recuperatório (Relator: Ricardo Negrão; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data do Julgamento: 18/12/2017; Data de Registro: 19/12/2017).

[9] No AI n. 2026607-84.2021.8.26.0000, o TJSP não permitiu a compensação de crédito futuro e incerto. (Relator: Maurício Pessoa; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 01/10/2021; Data de Registro: 01/10/2021). No mesmo sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2219545-43.2020.8.26.0000; Relator: Alexandre Lazzarini; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 12/03/2021; Data de Registro: 12/03/2021)

[10] Agravo de Instrumento 2187091-10.2020.8.26.0000; Relator: Alexandre Lazzarini; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 24/02/2021; Data de Registro: 25/02/2021.

Mariana Negri, formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduada em Direito Processual Civil pela PUC-SP, com formação complementar em contabilidade financeira pela FGV. Advogada na Wald, Antunes, Vita, Blattner

Pâmela Silveira Leite, formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduada pela FGV. Advogada na Wald, Antunes, Vita, Blattner

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