Opinião

Dia da Condenação Injusta – Por que condenamos inocentes?

Data serve para fomentar o debate em torno do tema

2 de outubro de 2020

Por Dora Cavalcanti*

Artigo publicado originalmente no Migalhas

A ninguém interessa a condenação de um inocente. Quando uma pessoa inocente cumpre pena por um crime que não cometeu, o sistema de justiça falhou. E isso pode ter ocorrido sem que os atores do poder judiciário tenham desejado contribuir para aquela injustiça.

É o que acontece, por exemplo, quando um reconhecimento é feito às pressas, sem seguir as cautelas previstas na lei. Anos de pesquisa científica comprovaram que a memória humana é extremamente frágil e suscetível a contaminações. Mesmo durante o sono nossos registros de memória são alterados, em um processo espontâneo. Nesses casos, perde a vítima, que passou a conviver com a falsa sensação de que Justiça foi feita, e a pessoa presa, que terá que tentar sobreviver ao cárcere com a dor amplificada por se saber inocente.

Outras vezes, infelizmente, uma pessoa é condenada embora inocente porque alguém no meio do caminho não cumpriu com suas obrigações. A investigação pode ter sido mal feita, a acusação pode ter abraçado a primeira tese que se desenhou sem explorar outras hipóteses, a defesa pode ter “cochilado” ou mesmo pensado que diante da gravidade do caso pouco ou nada havia a fazer. Em situações mais graves, e infelizmente não tão raras, profissionais que deveriam estar a serviço da lei agem de forma espúria, recebendo dinheiro para incriminar a pessoa errada ou deixando de juntar ao processo elementos favoráveis ao investigado.

Diferentemente do que se imagina, pessoas são condenadas todos os dias com base em poucas provas, muitas vezes tão somente na chamada prova oral. Às vezes, a condenação se dá em uma única audiência! Imagine ser levado ao fórum em uma única oportunidade e sair de lá condenado a muitos anos de prisão?

Assim como outros 66 projetos espalhados ao redor do mundo, o Innocence Project Brasil se dedica a investigar e reverter casos de pessoas inocentes que foram condenadas em definitivo. Para usar termo tão debatido nos últimos anos, estamos falando de homens e mulheres que acabaram condenados, com trânsito em julgado, por um crime que não cometeram.

Infelizmente esse drama é mais comum do que se imagina, e o estudo apurado dos principais fatores que contribuem para a ocorrência de um erro judiciário serve para tentar evitar que novos erros se repitam. É claro que cada caso é um caso, mas assim como acontece em tantos outros campos do conhecimento, os avanços da ciência e as novas tecnologias jogam luz sobre o quanto determinados tipos de prova são ou não confiáveis, e como o sistema de justiça criminal pode e deve exigir provas mais seguras para lastrear uma condenação criminal.

O primeiro desafio do projeto brasileiro era justamente verificar se as principais causas identificadas, ao longo de quase 30 anos de trabalho nesse campo nos Estados Unidos, também seriam aplicáveis à nossa realidade forense. Em três anos de atuação, e já tendo recebido mais de 1.600 pedidos de ajuda de pessoas que clamam inocência, podemos afirmar com tranquilidade que ao menos quatro das cinco principais causas mapeadas pela Innocence Network encontram ressonância no sistema de justiça criminal brasileiro. São elas: erros judiciários provocados por reconhecimentos equivocados; condenações de inocentes em razão de uma atuação indevida das polícias ou do Ministério Público; erros em que a atuação insuficiente da defesa também contribui para o resultado injusto, e ainda problemas relacionados a perícias e provas técnicas.

Neste último ponto, enquanto os dados retratados na Base Nacional de Exonerados (condenados que tiveram sua inocência comprovada) revelam erros decorrentes de técnicas periciais que depois se mostraram totalmente imprecisas e foram declaradas obsoletas, no Brasil essa temática se apresenta de outra forma, residindo na ausência de elementos periciais a informar a imensa maioria das condenações. Aqui a prova oral continua a ser o carro chefe da imensa maioria das sentenças criminais, sendo extremamente comuns condenações por crimes contra o patrimônio e delitos da Lei de Drogas fundamentadas exclusivamente no relato de testemunhas, muitas delas policiais.

Mas o que aprendemos ao traçar um caminho em retrospecto no processo de uma pessoa que foi condenada em definitivo muito embora fosse inocente? A partir do mapeamento dos problemas que se repetem em diversos processos, podemos pensar em mudanças e cuidados que podem ajudar a evitar novos erros judiciários. No que diz respeito aos reconhecimentos, existem soluções simples e que não representam custo extra para a Justiça. O trabalho das Defensorias, por seus centros de pesquisa e em sua cada vez mais marcante atuação perante os tribunais, tem papel fundamental para que essas pautas avancem.

No ano passado, o Innocence Project Brasil teve a honra de receber o Prêmio Innovare, na categoria Advocacia. Com a honraria veio a responsabilidade de trabalhar cada vez mais para a conscientização de todos sobre as razões mais comuns para a condenação de inocentes, e, mais importante, sobre como podemos evitá-las. Conversas e debates informados são sempre o primeiro passo, e fazem a diferença.

Ao longo de 2020 reportagens muito bem feitas nos ajudaram a conhecer histórias de famílias que foram atrás de comprovar a inocência de seus parentes presos. Foi assim com Igor, Douglas, e Cleber, que voltaram para casa e passaram a falar abertamente sobre o trauma que vivenciaram. Hoje a importância de trazer imagens de câmeras de segurança que podem ter captado o momento do crime já estão na ordem do dia. Mais e mais advogados vêm passando a requerer a produção dos dados das empresas de telefonia que permitem traçar a localização do usuário de telefone a partir das Estações Rádio Base. Relatórios analíticos do Facebook, do Google, registros do Waze e tantos outros sistemas tecnológicos que podem anotar nossos passos. A enxurrada de smartphones na sociedade propicia uma série de ferramentas que devem ser lembradas não só para condenar, mas também para absolver.

Assim como nos acostumamos a ver vidrados conversas de áudio ou mensagens trocadas em aplicativos estampadas na tela da TV para condenar alguém, é fundamental que as provas advindas da tecnologia passem também a ser exigidas para corroborar (ou não) a prova oral. E cabe ao Judiciário assegurar que essas provas sejam produzidas, pois muitas vezes a defesa não tem os meios necessários para obter, sozinha, um dado que pode ser vital.

Se sabemos da fragilidade da memória, não podemos seguir decidindo com base em concepções superadas. Não há custo extra para a Justiça e anos da vida de um inocente podem e devem ser poupados.

A data de 2 de outubro, Dia da Condenação Injusta, serve para fomentar o debate em torno desse delicado tema. Todos estão convidados a conhecer o trabalho desenvolvido pelos projetos que integram a Innocence Network e o relato dos inocentes que depois de muita luta e sofrimento recuperaram seu bem mais precioso: a liberdade.

No Brasil a data coincide com o aniversário do Massacre do Carandiru. Nada mais oportuno a nos motivar a lembrarmos que cada pessoa presa tem nome, família, e merece nosso respeito. Vale sonhar com o dia em que a presunção de culpa não sirva mais como lastro a justificar uma prisão.

 

*Dora Cavalcanti é advogada criminal, sócia do Cavalcanti, Sion e Salles Advogados e Diretora do Innocence Project Brasil.

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