O Supremo Tribunal Federal já formou maioria para impedir a utilização da tese da “legítima defesa da honra” em casos de feminicídio. O argumento, baseado em uma interpretação controvertida do antigo Código Penal, de 1890, admitia o excludente de ilicitude em casos de crime cometido contra cônjuge para proteger a “honra da família”, e era visto em alguns julgados envolvendo adultério.
Os ministros votaram pela inconstitucionalidade da alegação, por violar princípios como o da proteção à vida, dignidade da pessoa humana e igualdade.
Advogados apoiaram a decisão, mas alertam para o direito à ampla defesa e a questões que ainda precisam ser esclarecidas.
“Essa era uma tese arcaica e sexista, que dava amparo a crimes violentos contra a mulher, além de representar uma grande contradição em relação à Lei Maria da Penha e aos princípios de Justiça e igualdade de nossa Constituição”, diz Anne Wilians, advogada e presidente do Instituto Nelson Wilians. “Caiu tarde. Agora, há um degrau a menos que justifique o feminicídio e outras injustiças.”
Paula Sion, criminalista e sócia do Cavalcanti, Sion e Salles advogados, diz que foi totalmente acertada a decisão do Supremo. “O direito sempre deve acompanhar a evolução da sociedade. A tese da legítima defesa da honra, embora muito utilizada em tempos passados no Júri, na defesa de maridos supostamente traídos, nunca teve e não tem o menor cabimento. A Constituição defende o direito à vida e homens e mulheres têm exatamente as mesmas garantias. Seria lícito uma mulher matar um homem se fosse traída? Como entender aceitável o contrário? Lembrando que o adultério já não é mais crime desde 2005”, analisa.
Para a criminalista Mayra Mallofre Ribeiro Carrillo, sócia do Damiani Sociedade de Advogados, o avanço do processo civilizatório deveria “redundar naturalmente na rejeição da tese pelo Tribunal do Júri, instituição democrática composta por cidadãos comuns que refletem os anseios da sociedade na qual estão inseridos”. “No entanto, ainda existem poucos casos em que a absurda tese é acolhida pelo Júri Popular. Daí a necessidade da intervenção da Suprema Corte como catalizadora do processo civilizatório, em seu papel de guardião dos direitos à vida, à dignidade da pessoa humana e à igualdade”, completa.
Marina Veras, advogada e coordenadora da área Pro Bono do WZ Advogados (WZ Social), sustenta que a decisão do STF é um posicionamento necessário.
“Para que haja uma efetiva diminuição da desigualdade e discriminação estruturais, e que afetam as mulheres da pior maneira possível, é primordial que o Poder Judiciário revise a forma de aplicação e proteção dos direitos da mulher. Como coordenadora de um projeto pro bono, vivencio diariamente inúmeros casos de mulheres vítimas de violência doméstica, que estão inseridas em um ciclo de violência que se inicia em casa e termina, muitas vezes, nos tribunais. A forma como o Estado processa e julga os crimes cometidos contra essas mulheres, muitas vezes sendo coniventes com o comportamento violento, pode ser considerada parte desse ciclo. O Brasil possui marcos jurídicos fundamentais na luta contra a violência de gênero, como a Lei Maria da Penha, de 2006, e a tipificação do feminicídio, em 2015. Assim, impossível não reconhecer o importante passo que esse julgamento representa para a garantia dos direitos constitucionais da mulher”, diz Veras.
Mônica Sapucaia Machado, advogada especialista em direito das mulheres e professora do IDP, avalia que os votos dos ministros do STF em relação à impossibilidade da teoria da legítima defesa da honra são mais do que a afirmação, óbvia, da inconstitucionalidade da pseudoteoria e de que validar tal argumento seria uma “afronta aos direitos humanos”. “Os votos demonstram que a Suprema Corte brasileira incorporou o entendimento de que os direitos das mulheres são direitos humanos e que a estrutura sexista perpassa todas as esferas sociais e, por isso, precisa ser combatida cotidianamente. É um alívio saber que essa teoria assombrosa foi, de vez, rechaçada pelo STF”.
Fernanda Tórtima, especialista em Direito Penal e sócia do Bidino & Tórtima Advogados, vê o tema como sensível. “O STF está fazendo o sopesamento entre valores constitucionais: o princípio da ampla defesa e a soberania dos veredictos do júri popular, que são mitigados, embora não completamente afastados, em benefício de princípios ainda mais caros, como o da dignidade da pessoa humana, da igualdade e do direito à vida”.
Adib Abdouni, advogado criminalista e constitucionalista, sustenta que a tese, enquanto causa de exclusão da ilicitude, é incompatível com o sistema jurídico constitucional. “A Constituição é guiada pelos princípios fundamentais de proteção à vida e da dignidade da pessoa humana, isso sem falar da manifesta discrepância da hierarquia existente entre os dois bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal, a resultar em anacronismo a aceitação do sacrifício do maior, a vida”.
Abdouni complementa que, nesse sentido, “o entendimento manifestado pela maioria dos ministros do Supremo representa um avanço significativo para a toda a sociedade, assim como substancial contribuição para o combate da violência doméstica e familiar contra a mulher, cujos efeitos didáticos e preventivos, espera-se, sirvam para refrear os crimes de feminicídio pelo cometimento do delito contra a mulher por razões ultrapassadas de atingimento da honra do agressor, com menosprezo à sua condição feminina”.
Rodrigo Faucz Pereira e Silva, professor de Processo Penal e advogado especializado em Tribunal do Júri, considera a legítima defesa da honra uma tese abjeta e que deve ser afastada. Ele pondera, porém, haver questões ainda a serem esclarecidas.
“Sobre isso [afastamento da tese] não há dúvidas. O problema é o caminho escolhido. A interpretação desse julgamento poderá ser catastrófica para a prática do procedimento do Tribunal do Júri. E se o acusado mencioná-la no interrogatório? Deve o juiz dissolver o conselho de sentença? Por quantas vezes? E se o marido não matar a mulher e sim o seu amante? E se for a mulher que mata o homem nessa mesma situação? Também estaria proibida a legítima defesa da honra? E se a defesa sustentar que se trata de uma causa de diminuição de pena, mas não pedir absolvição? Isso caracterizaria sustentação ‘indireta’ da legítima defesa da honra? São questões que não foram devidamente refletidas para que o resultado possa ser aplicado no caso prático. Mas reafirmo: o marido cometer feminicídio e sustentar legítima defesa da honra é absolutamente lamentável e pavoroso. No entanto, preocupa-me a consequência prática de tentar suplantar as necessárias políticas públicas por intermédio da mitigação, mesmo que indireta, de princípios fundamentais constitucionais, como a soberania dos veredictos e a plenitude de defesa”, diz Faucz.