Desde o início desta pandemia, diversas Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) se comprometeram a contribuir no combate global à Covid-19. De acordo com documentos e declarações das próprias IFIs, os investimentos no ano de 2020 deveriam direcionar ajuda e outros apoios para aqueles mais vulneráveis e impactados pela pandemia.
No entanto, o estudo “Investimentos de Instituições Financeiras Internacionais no Brasil em 2020: houve auxílio para o combate à pandemia da Covid-19?” demonstra que os projetos de desenvolvimento dessas instituições, em grande parte, não abarcaram transferência direta de renda para as populações que estão passando fome e nem a compra de medicamentos, apoio a hospitais e UTIs. Os setores mais privilegiados pelas IFIs foram normativa e governança, finanças, e infraestrutura.
A pesquisa, que foi realizada pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) em parceria com o Instituto Maíra e a International Accountability Project, traz uma metodologia inovadora. Utiliza o Sistema de Alerta Prévio, que monitora e sistematiza projetos de instituições financeiras de fomento ao desenvolvimento, com o objetivo de informar previamente comunidades que possam ser afetadas. As três organizações analisaram um montante de U$ 13,5 bilhões alocados em 123 projetos de IFIs entre março e novembro de 2020.
Os investimentos das IFIs em 2020
Dos 123 projetos analisados, somente 24 (19,5%) tiveram como foco o combate à Covid-19, o correspondente a U$ 3,8 bilhões do montante total. E destes 24, apenas dois projetos (US$ 2 bilhões) foram de transferência direta às populações mais afetadas pela pandemia.
Os três setores mais privilegiados pelas IFIs foram normativa e governança; finanças, e infraestrutura, em detrimento de áreas prioritárias para o enfrentamento à pandemia, como água e saneamento, educação e saúde. Isso significa que estas instituições estiveram preocupadas, assim como nos anos anteriores, em preparar o terreno para que o setor privado tenha a rentabilidade necessária para investimento.
“Principalmente neste momento, os bancos públicos têm que ter como prioridade combater a pandemia e alocar seus recursos para áreas de necessidade emergencial: saúde, educação, auxílio para pessoas mais necessitadas. Eles disseram que iriam fazer isso, mas quando olhamos para os principais investimentos que entraram no Brasil em 2020, vemos que se manteve esta estratégia de investir em infraestrutura, reformas e modernização do Estado para atrair o setor privado”, analisa Livi Gerbase, assessora política do Inesc e coautora do estudo.
Alexandre Andrade Sampaio, coordenador para América Latina e Caribe da International Accountability Project e coautor do estudo, observa que nem 20% dos projetos financiados por estas instituições mencionam a Covid. “E, quando mencionam, não significa que realmente estão direcionados ao tema”. Este é o caso do projeto denominado RSE COVID Jalles, da Corporação Internacional de Financiamento (IFC), que destinou US$ 20 milhões para uma empresa da agroindústria sucroenergética como recurso de resposta à Covid-19, sem detalhar a relação deste recurso com o combate emergencial ao vírus.
Além disso, a pesquisa revela que os projetos de investimento não cumpriram o mínimo necessário para assegurar que a implementação deles não piore a situação social e ambiental no país. “Estamos mostrando que muitos dos investimentos que entraram no Brasil não têm salvaguardas e política de redução de impactos”, explica Gerbase.
A reconstrução verde
O discurso da recuperação verde vem sendo pautado pelos próprios bancos nas propostas de combate à pandemia, através do discurso do “Building Back Better”, que significa reconstruir de uma maneira melhor do que era antes. Neste panorama, as pautas energética e climática deveriam ser centrais na escolha dos investimentos para socorrer a população na atual crise sanitária.
Contraditoriamente, apesar do maior número de projetos classificados como limpos pelas IFIs, quando contrastados apenas aqueles de produção de energia, as energias não renováveis tiveram mais espaço que as renováveis, aponta a pesquisa publicada pelo Inesc. Somente 3 dos 12 projetos estão relacionados de fato à produção de energia renovável. Além disso, “nestes projetos não é possível ver quais são as energias limpas em que de fato está se investindo”, lamenta Gerbase.
A autodefinição “energia limpa” também é problemática, alertam os autores do estudo. Dos 12 projetos realizados em 2020 e relacionados ao setor energético, 10 são classificados pelos seus respectivos bancos como energia limpa. Todavia, destes projetos limpos, sete estão relacionados à distribuição elétrica, redução do consumo de energia elétrica e às emissões de gases de efeito estufa. Projetos deste tipo não estão relacionados diretamente com a produção de energia ou com o enfrentamento à pandemia, embora possam causar impactos ambientais positivos.
Falta informação sobre os impactos socioambientais dos projetos
Embora não seja possível avaliar a execução dos 123 projetos analisados no estudo, já que a maior parte ainda estava, no momento da análise, em fase de negociação final, é notório que menos da metade (49,6%) contém a classificação de risco de impacto socioambiental. A qualificação do projeto de acordo com seus possíveis impactos pode ser entendida como um indicativo do comprometimento dos bancos em cumprir as salvaguardas, ou seja, com medidas de mitigação e controle de impactos socioambientais dos projetos.
Algumas instituições, como a Corporación Andina de Fomento e o Banco Europeu de Investimento, não possuem nenhum projeto com avaliação de risco de impacto. “É risível a porcentagem que nós temos hoje de acesso à informação de uma coisa básica. Não estou falando de detalhes sobre o projeto, estou falando de categorização de risco para saber se o projeto pode ser impactante em termos de direitos humanos e ambiental”, alerta Alexandre Andrade Sampaio.
O estudo analisa ainda dois casos em que populações afetadas pelos investimentos internacionais – em projetos realizados anteriores à 2020 – não tiveram as salvaguardas respeitadas: a Comunidade Quilombola do Araripe, atingida pela construção de um parque eólico no nordeste do Brasil, e a Associação de Favelas de São José dos Campos.
“Sem a apresentação das análises de risco se torna inviável a apresentação das salvaguardas e, por consequência, não teríamos como proteger os direitos comunitários e as comunidades estariam mais vulneráveis. Estes erros já denunciados por comunidades no passado, já levados para as juntas diretivas dos bancos, seguem acontecendo no presente. Ou seja, muito pouco foi feito com as denúncias das comunidades e a voz delas segue silenciada”, explica Daniel Lopes Faggiano, diretor executivo do Instituto Maíra e coautor da pesquisa.
O que ainda pode ser feito?
O estudo recomenda às IFIs que revisem a sua estratégia para o Brasil e de fato priorizem as necessidades da população brasileira, principalmente os setores mais afetados pelas crises econômica, sanitária, social e ambiental – que tendem a se agravar em 2021.
“À medida que a crise da pandemia no Brasil piora a cada semana, com um número recorde de mortes, a fome e a insegurança alimentar avançam. Estamos longe de superar o vírus, e as instituições financeiras podem ter um papel melhor neste cenário, começando por ouvir as comunidades impactadas por seus projetos e pela adoção de uma política mais transparente que mostre que de fato seus investimentos estão sendo feitos onde mais precisamos, combatendo a fome e a morte no Brasil e garantindo os direitos humanos”, reivindica Gerbase.