Por Márcio Casado (foto)*
Artigo publicado originalmente na ConJur
Tal qual Emmanuel Macron, o senador Antonio Anastasia (PSD-MG) — ao menos em tese — reconhece que não se está frente a uma “gripezinha” ou “resfriadinho”.
Tanto é assim que o PL (Projeto de Lei 1.179, de sua autoria) traz na justificação a expressa invocação da Lei Failliot, editada na França em 1918, um ano antes do final da Primeira Guerra Mundial.
Essa é a primeira lei francesa que trata expressamente da possibilidade de revisão de contratos por onerosidade excessiva (à época, causada pela guerra).
No entanto, o PL 1.179 faz justamente o contrário no que concerne às causas de revisão, resolução e resilição dos contratos. Ele restringe, no artigo 7º, as possibilidades de revisão contratual.
O senador considera que eventos econômicos causados pelo coronavírus (a lei é editada especialmente para regulação de relação jurídica de Direito Privado no período de pandemia do coronavírus, conforme art. 1º), por meio de uma ficção jurídica, deixam de ser imprevisíveis. São eles: aumento da inflação, variação cambial e desvalorização ou substituição do padrão monetário. E essa ausência de imprevisão tem como termo inicial o dia 20 de março de 2020 (artigo 1º, parágrafo único).
Se a Covid-19 é evento imprevisível, suas consequências, evidentemente, também o são. E o são desde antes de 20 de março de 2020. A construção do PL 1.179 é deficiente e prejudicial a quem foi e a quem virá a ser atingido pela pandemia.
Os parágrafos 1º e 2º, do artigo 7º, conseguem ir adiante e excluir, expressamente, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações contratuais sujeitas ao Código Civil.
Basicamente, afasta a incidência do Código de Defesa do Consumidor das relações entre bancos e empresas, não interessando o tamanho delas.
Qual a utilidade disso, justo num momento de crise sem precedentes?
Há que se questionar o senador.
Há que se perguntar se, à luz do artigo 170 da Constituição Federal, essa limitação da aplicação de norma protetiva faz algum sentido. O dispositivo constitucional determina que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados o princípio da defesa do consumidor” (inciso V).
Antes de 20 de março de 2020 havia a rede protetiva da lei de consumo para as relações entre empresas e bancos — para ficar no exemplo mais evidente e grave nesse momento (e isso ocorria em diálogo com o Código Civil). O vírus, além dos males físicos que causa, afasta aplicação do Código de Defesa do Consumidor? É moléstia nova que só se percebe no Brasil.
O PL 1.179, nessa lamentável parte, lembra muito a iniciativa dos bancos na Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 2591-1, no final do ano de 2001 (dois anos depois, lembre-se, da maxidesvalorização do Real que levou muitas empresas e consumidores aos tribunais para rever os contratos — coincidência?).
Para refrescar a memória, a aplicação do CDC às operações de crédito ao consumo fez com que a Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif) propusesse a Adin nº 2591–1, com o objetivo de declarar a inconstitucionalidade do artigo 3º, §2º, do Código de Defesa do Consumidor, na expressão “inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária”.
Essa ação foi julgada improcedente, proclamando-se a constitucionalidade da regra do artigo 3º, §2º, do CDC. Houve nove votos pela improcedência e dois pela procedência parcial (ministros Carlos Velloso e Nelson Jobim). Os votos vencidos entendiam pela procedência parcial para excluir a regulação dos juros da incidência do CDC. O relator designado para o acórdão acabou sendo o ministro Eros Grau.
A ação continha pedido de liminar. O Consif justificou tal pedido no fato de o STJ estar decidindo, a cada dia que passava, mais a favor do consumidor e contra os abusos dos bancos. É isso mesmo: os bancos diziam que era urgente suspender a aplicação do CDC, pois as decisões do STJ estavam prejudicando-os demais (principalmente aquelas relacionadas à maxidesvalorização do Real).
Nesse momento de crise o senador quer permitir que os bancos possam cometer os abusos que a imprensa já começou a noticiar?
De fato, a regra por ele proposta faz com que normas protetivas da lei de consumo, no momento em que empresas mais precisam ser resguardadas, sejam delas afastadas.
Nesse cenário, o PL 1.179 tira das empresas os remédios jurídicos que já há e poderiam ser ministrados no tratamento delas.
É uma antivacina, um normativo tóxico que não deveria fazer referência à Lei Failliot. Merece ser revisto para ampliar a rede de proteção jurídica aos empresários, não para reduzi-la sem qualquer justificativa plausível.
Márcio Casado é especialista em Direito Bancário e Societário e sócio do Márcio Casado & Advogados.