Opinião

Projeto de lei que prevê taxação de dividendos é impertinente

Mudanças são necessárias, mas exigem amplo debate

2 de abril de 2020

Por Misabel Abreu Machado Derzi e Fernando Moura

Artigo publicado originalmente na ConJur

O presente ensaio tem por objeto realizar algumas breves considerações sobre o Projeto de Lei 766/2020, de autoria do Exmo. Sr. Senador da República, Randolfe Rodrigues. Em que pese as sinceras homenagens que devem ser rendidas ao Ilustre Senador, o projeto legislativo de sua autoria padece de insanável vício de impertinência, conforme será demonstrado a seguir.

A regra relativa à isenção de lucros e dividendos necessita de reformas, não se contesta. No entanto, qualquer mudança deve ser realizada após profícuo debate, sob pena de que um pleito manifestamente legítimo em sua essência se transforme em uma plataforma ideológica antipática e, sobretudo, ineficaz sob a perspectiva a que se propõe, que é declaradamente o aumento da arrecadação.

De forma mais objetiva, o referido projeto de lei propõe a instituição de um “Sistema Solidário de Proteção à Renda”. Entre outras questões importantes, irrelevantes, porém, para o objeto do trabalho, chama atenção o parágrafo terceiro do art. 2º, que propõe seja conferido ao Poder Executivo o poder de revogar, por ato, a isenção sobre a distribuição de resultados por pessoas jurídicas, vigente no Brasil desde 1º de janeiro de 1996, por força do art. 10, da Lei n. 9.249/95.

Como ponto de partida, deve-se considerar tratar-se de projeto elaborado em um contexto de calamidade pública causada pela pandemia decorrente da Covid-19. Por isso, torna-se incontroversa a constatação de que a medida proposta não busca acelerar a implementação de mudança debatida pela sociedade e objeto de maioria no Parlamento. Ao contrário, trata-se de atropelo sobre questão de cunho essencialmente técnico, com finalidade estritamente arrecadatória, algo preocupante em tempos de clamor público por uma atuação rápida e eficiente por parte do Estado.

Não se está aqui a negar que o Estado deve atuar, exercendo o seu papel constitucionalmente previsto. Nesse ponto, inclusive, liberais e conservadores parecem (e devem) estar de acordo a respeito da importância do socorro estatal, na medida em que a atividade econômica privada se vê impedida de produzir boa parte da riqueza a que estava acostumada. A propósito, sequer caberia esperar da iniciativa privada a responsabilidade econômico-financeira pela solução de um problema de saúde pública de proporções sem precedentes conhecidos.

Assim, se o Estado deve atuar e os seus recursos dependem, primordialmente, da arrecadação de tributos (pois não se pode simplesmente imprimir dinheiro), então medidas de cunho arrecadatório deveriam ser vistas com bons olhos. Sim e não. Arrecadar é essencial, mas não a qualquer custo. Há de se ter respeito às regras e responsabilidade quanto aos meios, para que a escolha tenha, em concreto, a capacidade de gerar os efeitos pretendidos. Do contrário, estaremos diante de uma alteração legislativa de natureza oportunista, editada em um contexto pretensamente comparável a um estado de necessidade.

Oportunista, esclareça-se, no sentido de fazer passar pelo Congresso Nacional medida que, em uma conjuntura de normalidade, não seria aprovada, como até hoje não foi. Merece destaque o fato de que tramitam no Poder Legislativo projetos de lei que endereçam a questão da isenção de lucros e dividendos já há algum tempo, mas sem maiores avanços. Nesse sentido, o oportunismo decorreria da constatação de que a medida não se mostra adequada ao seu propósito original (melhorar a regra isentiva atual, i.e.), buscando apenas promover um (improvável) aumento da arrecadação, sob a bandeira de uma decisão supostamente cartesiana, aquela cuja opção óbvia é tirar dinheiro dos ricos para dar aos pobres, algo aparentemente mais legítimo em um momento de calamidade.

Avançando um pouco sobre o conteúdo da proposta, causa espécie a opção por um mecanismo pouco democrático para a revogação de leis. É que o Projeto n. 766 pretende que o Poder Executivo fique autorizado a revogar, por ato de sua competência, um determinado dispositivo legal (Lei n. 9.249/95, art. 10). Ora, é de se indagar por qual razão o dispositivo citado não seria revogado, desde já, pelo próprio Poder Legislativo, em um contexto de votação vinculado à matéria de fundo (a isenção sobre resultados distribuídos). Seria muito mais razoável e democrático.

A ideia de que ao Poder Executivo seja conferida tal prerrogativa denota a intenção de criar uma situação de constrangimento ao Presidente da República, seja ele(a) quem for, pertença ele(a) a qualquer partido ou orientação política. Vejamos. Diante de um estado de calamidade será insuportável a pressão para que o Chefe do Executivo lance mão de medidas rápidas e pretensamente eficazes, capazes de gerar grande arrecadação e, acima de tudo, por meio de políticas tributárias de cunho redistributivo. Aparentemente, seria exemplo de uma medida dessa natureza a revogação da isenção do imposto de renda sobre rendimentos do capital. A recusa de qualquer Presidente a assim proceder, em um cenário como o presente, certamente seria interpretada como um favorecimento deliberado às camadas mais favorecidas da população, algo impopular e reprovável.

Dito de outro modo, o mecanismo constante do projeto de lei aqui examinado representa a opção por estratégia pouco democrática. A um só tempo se atropela o processo legislativo de discussão de leis e se transfere ao Poder Executivo matéria essencialmente vinculada ao mister Legislativo. Há um quê de autoritário nisso tudo.

Tampouco se justifica a afronta à democracia e ao Estado de Direito em situação excepcional. A legalidade é exigência constitucional à criação, majoração, extinção ou reinstituição de tributos. É função indelegável do Poder Legislativo ao Executivo. A proposta agride, então, a separação de poderes, a indelegabilidade de funções e a legalidade. Trata-se de direito fundamental do contribuinte, protegido por cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º).

Voltando a aspectos específicos do Projeto de Lei n. 766/2020, a redação parece desconhecer as razões pelas quais a regra contida no art. 10, da Lei n. 9.249/95 existe há pouco mais de 25 anos. Por mais que se sustente as possíveis razões ideológicas atinentes à existência do referido dispositivo legal (supostamente um privilégio de natureza tributária conferido aos titulares de rendimentos do capital), trata-se de regra de cunho técnico, que manifesta a opção do Poder Legislativo por um modelo integrado de tributação da renda. É dizer, a riqueza é tributada uma única vez, no nível das pessoas jurídicas e não no das pessoas físicas.

Em que pese a compatibilidade da regra brasileira com alterações legislativas ocorridas em outras importantes jurisdições, naquele exato contexto histórico, o modelo tupiniquim também tem suas origens em uma tradição de nossa legislação. Trata-se da separação rigorosa entre pessoas físicas e jurídicas, não apenas para fins civis como também para fins tributários. Esse distanciamento acaba por sugerir que a riqueza passada de uma pessoa jurídica para uma pessoa física, por meio da distribuição de lucros, caracterizará sempre a existência de uma riqueza nova (manifestação autônoma de capacidade contributiva), com natureza de rendimento do capital.

Esse raciocínio parece conduzir à inexorável (apesar de equivocada) ideia de que lucros recebidos denotariam sempre a presença de rendimentos do capital. Como consequência, a sua isenção levaria à caracterização de um benefício intolerável, dado que a tributação sobre os rendimentos do trabalho acabaria se revelando mais gravosa. De um lado, a aplicação da tabela progressiva do imposto de renda sobre o trabalho. De outro lado, a isenção completa do referido imposto sobre rendimentos do capital. Tudo isso somado pode seduzir os menos versados em questões tributárias, que são complexas por definição. Mas não pode, de forma alguma, escapar a um juízo mais crítico quando se está diante de alterações legislativas importantes.

Como adiantado, não se está aqui simplesmente advogando a manutenção do art. 10, da Lei n. 9.249/95, sabidamente abrangente em um sentido negativo. O que se pretende é o seu aperfeiçoamento, por meio de parâmetros mais razoáveis, que não permitam a passagem, livre de imposto de renda, de todo e qualquer lucro distribuído aos sócios. Isso difere, contudo, de sustentar a sua irrefletida revogação, o que causará, ainda que em sentido inverso, as mesmas distorções que o regime atual ocasiona. Não se corrige uma injustiça pela prática de outra igual.

As considerações acima estão assentadas na ideia de que nem todos os resultados distribuídos caracterizam rendimentos do capital. Aliás, boa parte deles representa rendimentos do trabalho. Para tanto, basta imaginar uma pequena sociedade de médicos, optante pela tributação do seu lucro de acordo com a sistemática presumida. A entrega do resultado aos sócios, todos eles médicos, não indica a presença de um rendimento do capital. Aliás, são verdadeiros rendimentos do trabalho, ainda que a forma de sua percepção tenha envolvido a constituição de uma pessoa jurídica. A rigor, tal pessoa jurídica não revela a existência de capacidade contributiva, senão pela via indireta daquela manifestada pelos sócios, cuja origem é o produto do seu trabalho, pessoalmente exercido.

Nesse ponto — da constituição de pessoas jurídicas — o problema não reside na Lei 9.249/95. É que o Código Civil brasileiro de 2002 expressamente prevê a possibilidade de constituição de sociedades de pessoas, que podem ter como objeto a prestação de serviços de natureza personalíssima, como no caso dos médicos, que exercem profissão intelectual, de natureza científica, ainda que com o concurso de auxiliares ou colaboradores. Nessa esteira, a norma tributária impõe que essas pessoas jurídicas estejam submetidas ao imposto de renda das empresas (Lei n. 11.196/05, art. 129). Não há opção que possa ser manifestada em sentido diverso.

Esse sistema é pouco usual em outros países, que normalmente impõem a tributação de resultados dessa natureza diretamente no âmbito das pessoas físicas, sem a cobrança do tributo corporativo. Em outras palavras, tem-se a pessoa jurídica como um veículo para a obtenção de rendimentos das pessoas físicas, de tal sorte que elas (as pessoas jurídicas) não revelam capacidade contributiva para o pagamento de imposto sobre o lucro apurado de acordo com as regras civis/societárias. Geralmente não há, por assim dizer, previsão de dupla cobrança do imposto de renda sobre uma única manifestação de riqueza, como poderá ocorrer caso o Projeto de Lei n. 766/2020 venha a ser aprovado.

Novamente, a abrangência do modelo atual não será resolvida pela opção em sentido oposto, que poderá levar a uma previsão genérica de tributação excessiva. O efeito, por certo, não se refletirá na arrecadação, pela singela razão de que a açodada revogação da regra isentiva tende a inviabilizar regimes como o Simples Nacional e o Lucro Presumido. Esses regimes representam a opção da esmagadora maioria das pessoas jurídicas brasileiras, quase sempre sociedades de pequeno e médio portes, justamente as que mais estão a necessitar do socorro estatal. Portanto, não parece haver qualquer sentido nesse caminho. Em síntese, o projeto em questão busca atingir uma suposta correção de rota, em termos de política tributária, sob a bandeira do clamor popular em um contexto de calamidade pública declarada.

Outro ponto que parece indicar que os efeitos da proposta não foram corretamente mensurados consiste no fato de que a redação menciona apenas a tributação de lucros entregues por pessoas jurídicas a pessoas físicas. E quando os lucros forem pagos por pessoas jurídicas a outras pessoas jurídicas? Nessas hipóteses, não deveria haver a mesma incidência? O efeito prático da interpretação literal do texto levaria a uma consequência intoleravelmente incompatível com o pressuposto de justiça tributária que orienta o PL. É que a tributação apenas dos lucros pagos a pessoas físicas atingirá em cheio as sociedades de pessoas, deixando de fora várias sociedades de capital, que poderão se organizar de modo a diferir a entrega do dinheiro aos seus acionistas pessoas físicas, o que vai de encontro ao que parece almejar o Sen. Randolfe Rodrigues.

Finalmente, o Poder Legislativo pode instituir o imposto sobre grandes fortunas (IGF), restabelecer a cobrança da CPMF, aumentar as alíquotas do imposto de renda, modificar técnicas de arrecadação, enfim, praticar os mais diversos atos no contexto de suas atribuições. O que não é dado ao Poder Legislativo é transferir as suas responsabilidades (que são indelegáveis) ao Poder Executivo, em clara e direta ofensa ao princípio democrático.

Em resumo, a proposta em questão é desarrazoada, inoportuna, ideológica e tecnicamente equivocada, em que pese a sincera deferência dos autores ao Ilustre e competente Senador da República idealizador do Projeto de Lei n. 766, de 2020.

Misabel Abreu Machado Derzi é professora em Direito Tributário da UFMG, sócia do escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, membro da Academia Internacional de Direito e Economia e presidente da ABRADT.

Fernando Moura é mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), com residência pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); master of Laws (LL.M.) pela New York University (NYU); especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV); professor da Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC).

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