Por Liz Marília Vecci*
Artigo publicado originalmente na ConJur
A convite da Associação Brasileira de Direito Tributário (Abradt), estive no 25º Congresso Internacional de Direito Tributário em Belo Horizonte, que ocorreu após o primeiro turno das eleições. O país discutia xenofobia contra os nordestinos, com especial lupa à fala de uma advogada mineira. E lá estávamos nós, em Minas Gerais, onde eu coordenava um painel com a presença do pernambucano Everardo Maciel, referência em finanças públicas e tributação além de ex-secretário da Receita Federal. Na ocasião peticionei junto ao ex-secretário, pleito essencial ao meu viver: na ocorrência de uma separação do Nordeste resta antecipado meu pedido de imigração para as terras que nos deram Ariano Suassuna e inúmeros brilhantes intelectuais, incluindo o próprio Everardo.
Detenho-me nos elogios a Maciel não só por ocupar ele lugar de destaque no universo tributário brasileiro, mas, principalmente, porque aqui trago reflexões acerca de assuntos sobre os quais ele vem discorrendo permeado por lógica irretocável trazida do direito financeiro e tributário — a reforma tributária nacional e a reformulação da tributação da renda e do consumo.
A chegada da obra “Capital do Século 21”, do francês Thomas Piketty, há menos de uma década, alvoroçou a academia brasileira. A obra renovou olhares e fomentou debates sobre a razão final da tributação. Dele é a frase: “O papel principal do imposto sobre o capital não é financiar o Estado social, mas regular o capitalismo. O objetivo é evitar uma espiral desigualadora sem fim e uma diferença ilimitada das desigualdades patrimoniais, além de possibilitar um controle eficaz das crises financeiras bancárias”.
A tributação sobre lucros e dividendos é um paradigma a ser transposto por nossos legisladores. Há décadas debatemos o tema, tanto na academia como nos salões dos poderes legislativo e executivo; bem como nas reuniões do setor produtivo.
Nesta quadra da história, às vésperas de uma eleição presidencial acirrada, encontramos um evento interessante: a tributação dos dividendos é ponto de convergência entre os atuais candidatos à Presidência da República que, diga-se de passagem, navegam em campos ideológicos opostos.
A obra de Piketty continua celebrada, apesar de acusada de flagrantes manipulações de dados, e é parte dos parâmetros para nossas reflexões como sociedade. Caminhando para o pragmatismo, repousaremos nosso olhar sobre o Projeto de Lei (PL) 2337/21, um dos inúmeros projetos de lei tramitando no Congresso que tratam sobre tributação sobre lucros e dividendos.
O PL 2.337/21, que modifica a tributação pelo IRPF e IRPJ em diversos aspectos e propõe a tributação dos dividendos no País, foi aprovado em setembro de 2021 na Câmara, mas não avançou no Senado, onde está até hoje, sob a guarda do relator senador Angelo Coronel, aguardando emendas. Ao que tudo indica em razão de seus polêmicos efeitos sobre a campanha eleitoral em curso.
Do que exatamente estamos falando?
Há uma afirmação corriqueira e errada de que o Brasil não tributa lucro e dividendos, já que desde 1995, os dividendos são isentos de IR, sob a batuta do então secretário da Receita Everardo Maciel, isso porque o governo brasileiro optou por tributar na pessoa jurídica e não na física.
Os dividendos são, conceitualmente, a parcela do lucro das empresas distribuídas entre os sócios ou acionistas, como forma de remunerá-los pelo investimento feito; trata-se do resultado superavitário da empresa. Fazem-no na forma de distribuição de dividendos ou de juros sobre o capital próprio (JCP).
Esses lucros, que podem ser distribuídos, já são tributados na seara do IRPJ e da Contribuição Social sobre o Lucro, pagos pela empresa. No caso do JCP, atualmente paga-se IR de 15% na fonte, de forma que o acionista já o recebe líquido, não precisando emitir Darf para pagá-lo.
A proposta do governo, no PL acima mencionado, era a tributação do IRRF em 20% ou 30% (neste caso para os residentes em paraísos fiscais). Todavia, durante sua tramitação, o PL sofreu emendas, tendo sido aprovado na Câmara dos Deputados com alíquota de apenas 15%.
Recentemente, noticiou-se a mudança de estratégia no discurso do atual ministro da Economia quanto à ferramenta legal a ser usada na tributação dos dividendos:, tal tributação se dará por meio de PEC, que, segundo ele, já estaria articulada no Congresso. Há outras propostas, feitas por congressistas e até PEC’s no mesmo sentido. Cite-se como exemplo o PL 9.636/18 e o PL 3.241/15, todos apensados a um emaranhado de proposições sobre o mesmo tema, a maioria de iniciativa de parlamentares.
Sabe-se que uma crise fiscal como a que vivemos, acentuada pós pandemia da Covid, traz um cenário aflitivo para o chefe do Executivo, sendo preciso aumentar a receita para cobrir as despesas, o que somente ocorre com aumento de carga tributária. A racionalização do Estado, que passaria por uma reforma administrativa, é preterida pela necessidade premente de fazer “caixa”, seja para o benefício assistencial popular importante, como o Auxílio Brasil, seja para as despesas correntes.
Dados recentes do Banco Mundial confirmam que as empresas no Brasil pagam em média aproximadamente 40% a mais de tributos do que no restante do Planeta e 50% a mais em relação à OCDE. Não há espaço para aumentar tributos sem comprometer o empreendedor.
Já se fala inclusive em vinculação da taxação dos lucros e dividendos ao custeio do Auxílio Brasil, o que, salvo melhor juízo, seria uma atecnia já que os impostos não podem ter o produto de sua arrecadação vinculado a órgão, fundo ou despesa. Acrescento ao conjunto de equívocos o ensinamento do professor Everardo: tributar dividendos gera fuga de capital, basta olhar atento sobre exemplos recentes.
O cenário eleitoral seria o palco ideal para amadurecer o debate da tributação dos dividendos com a classe empresarial, todavia, a matéria foi parcamente dialogada e foi engolida pelas pautas de costumes e corrupção.
Se a tributação dos dividendos vier sob a forma de Lei Ordinária, há fortes vozes se levantando contra a referida norma, isso por ser bis in idem na bitributação dos lucros, prática possível apenas se autorizada expressamente pela Constituição de 1988. Logo, a possível inconstitucionalidade da exação se deveria ao fato de que os dividendos, como já mencionado, representam riqueza já tributada na pessoa jurídica.
Ao que tudo indica a ideia do atual ministro em eleger a via da PEC (processo legislativo mais longo e difícil sob o ponto de vista do quórum) tem a finalidade de resguardar a União contra possíveis e antevistas declarações de inconstitucionalidade, o que certamente não escaparia aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O fato de a exação vir sob a forma de PEC, embora a reforce, não livra a novel incidência da declaração de inconstitucionalidade, em razão de que a obra do constituinte derivado está sujeita ao referido controle pelo STF, especialmente quanto às incompatibilidades com o Sistema Tributário Nacional.
O surpreendente é que independente do viés ideológico de quem for eleito para presidir a nação, podemos esperar que a carga tributária será aumentada e os dividendos, já tributados, provavelmente serão o principal alvo. A sabedoria nordestina de Ariano Suassuna nos ensina: o ser humano tem duas saídas para enfrentar o trágico da existência — o sonho e o riso.
Liz Marília Vecci é tributarista, sócia fundadora do Terra e Vecci Advogados.