Opinião

Direcionamento do dinheiro das mulheres negras no Brasil

Mulheres negras sofrem dupla discriminação em uma sociedade racista e sexista

17 de outubro de 2022

Por Waleska Miguel Batista*

Artigo publicado originalmente no Jota

O dinheiro é a moeda de troca para aquisição de bens e serviços na sociedade, como vestimentas, produtos eletrônicos, assim como para garantir a saúde, o trabalho e a educação. Isto acontece porque a garantia constitucional de que os direitos sociais devem ser usufruídos gratuitamente não é materializada na prática.

Silvio Luiz de Almeida, advogado, filósofo e professor universitário, reconhecido como um dos maiores especialistas sobre economia e relações raciais, em seu livro “Racismo estrutural”, afirma que o racismo é a prática sistemática de discriminação com fundamento na raça, que se manifesta de modo consciente ou inconsciente, independentemente da condição econômica. Da mesma forma, o sexismo é um problema estrutural, e que todas as mulheres compartilham, como vítimas de violências conscientes e inconscientes pelo fato exclusivo de serem mulheres.

A partir dessa definição, Almeida aponta que as causas acumulativas de discriminação atravessam as mulheres negras, no mínimo, pelo fato de serem mulheres e negras, em uma sociedade racista e sexista, fazendo que, para elas, o acesso aos direitos e garantias seja mais difícil. Trata-se da dupla discriminação.[1]

Estas violências contra as mulheres negras podem ser diretas, como uma agressão, ou indiretas, mais difíceis de serem percebidas e até combatidas, como o caso de acesso ao mercado de trabalho, aquisição de imóveis, acesso ao crédito e até mesmo a ocupação de espaços concebidos como espaços de pessoas brancas, como shoppings, carros luxuosos e imóveis em lugares abastados.

Lélia Gonzalez, professora, filósofa e antropóloga brasileira, afirmou que o fato de as mulheres serem bem-educadas e inteligentes não era suficiente para que fossem destinadas para serviços como secretárias, vendedoras ou qualquer outra que atendesse ao público, isto porque essas atividades laborais colocam as mulheres negras como “o rosto da empresa”, o que não era aceito. Nesta sociedade racista, as mulheres negras deveriam ficar submetidas aos trabalhos do âmbito privado, como empregadas domésticas ou cozinheiras, sem acesso ao público. Nota-se, invisíveis. Assim, até os dias de hoje, o trabalho doméstico ainda é desvalorizado e recebe baixa remuneração.[2]

Dados do Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas (Dieese), de abril de 2022, apontaram que as mulheres representam 92% das pessoas ocupadas no trabalho doméstico, sendo que, deste grupo, 65% são mulheres negras. Desta forma, as mulheres negras são maioria na função de empregadas domésticas e recebem salários inferiores ao mínimo, que hoje é de R$ 1.212.[3]

Para além disso, as mulheres negras, ainda que ocupantes de outras atividades, recebem menos do que todas as outras pessoas: homens brancos, mulheres brancas e homens negros. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do segundo trimestre de 2020 apontaram que as mulheres negras denominadas como “sem instrução” receberam salário mensal de R$ 703, enquanto o salário mensal das mulheres brancas foi de R$ 1.371. No perfil das mulheres com nível superior completo, as negras receberam salário de R$ 2.994, enquanto o salário das brancas era de R$ 4.308.

Comparando as mulheres brancas e as mulheres negras, dados do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) apontam que os negócios de mulheres negras são abertos por necessidade e que apenas 21% deles possuem CNPJ, enquanto 42% dos negócios gerenciados por mulheres brancas possuem CNPJ, ou seja, o dobro.[4]

Relatório do Sebrae 2021 apontou que as donas negras de negócios apresentam maior proporção de informalidade do que as empreendedoras brancas e alcançam remuneração inferior. Além disso, as mulheres negras estão inseridas em trabalhos que possuem rendimentos menores e suas jornadas de trabalho são delongadas.

O mesmo relatório do Sebrae registrou os seguintes dados no quesito rendimento mensal por raça, cor e gênero, para o 2º semestre de 2021: homens brancos receberam R$ 2.749; mulheres brancas receberam R$ 2.305; homens negros receberam R$ 1.798; e mulheres negras receberam R$ 1.539. Ou seja, em média, o rendimento mensal das mulheres negras empreendedoras é 44% inferior ao dos homens brancos.

As mulheres negras recebem o pior rendimento, de modo que possuem menos dinheiro do que qualquer grupo. Apesar disso, seus gastos são mais elevados se comparados com uma mulher branca, uma vez que precisam usar seus rendimentos para sobrevivência na sociedade brasileira e não apenas com alimentação e saúde. Conforme mencionado, as mulheres negras acumulam mais atividades laborais e buscam formas de garantir que o rendimento auferido venha a suprir os gastos. Por exemplo, a empregada doméstica faz os “bicos” de diarista; a manicure também vende doces ou roupas. Estes acúmulos de atividades laborais podem ser danosos à saúde, mas são feitos para sobrevivência de si e dos seus familiares. Com isso, a pergunta que permanece é: Qual é o destino do dinheiro das mulheres negras, diante de tantas disparidades? Tanto as mulheres brancas como as negras direcionam seu dinheiro para gastos considerados urgentes, como alimentação, saúde, educação e transporte.

Todavia, as mulheres negras precisam usar destinar seu dinheiro para situações que tentam impedir o racismo e o sexismo. Ou seja, ser uma pessoa negra significa pensar que essa pessoa pertence a uma raça inferiorizada, de modo que precisará atender a determinados “códigos sociais”, que podem contribuir para inibir as potenciais violências racistas, uma vez que a pele negra é, em regra, imodificável. As pessoas brancas sequer pensam que integram uma raça específica, pois, no imaginário social, somente os negros pertencem a uma raça — a negra.

Dentre tantas preocupações de como usar o dinheiro para além das necessidades básicas de alimentação, as mulheres negras precisam também estar atentas com a aquisição de roupas, sapatos, arrumação do cabelo e outras questões estéticas que estão relacionadas a códigos de sobrevivência nos espaços sociais, como forma de minimizar o racismo que sofrem. Se tratarmos de uma mulher negra em espaços executivos, os custos com esses itens são ainda mais elevados, inclusive porque o mercado se aproveita do consumo de mulheres negras de produtos específicos e eleva abusivamente os preços dos produtos e dos serviços específicos para esse público.

Outra observação importante é o fato de as famílias negras sofrerem discriminação direta e indireta: nota-se que a ascensão de uma pessoa negra não faz necessariamente com que ela acumule qualquer tipo de riqueza, pois essa mesma pessoa também se responsabiliza pelo custeio de seus pais, sobrinhos e agregados, munindo-os dos códigos de sobrevivência necessários para evitar discriminações e violências diárias.

As pessoas negras, portanto, não têm herança, porque sua preocupação é garantir que todos aqueles que se encontram em seu entorno, em seu núcleo familiar como filhos, sobrinhos, netos e pais, possam usufruir uma vida melhor, de modo que tudo é partilhado. Por exemplo, se a mulher negra consegue uma renda melhor, ela vai investir em um plano de saúde para sua mãe, na escola de inglês para a(o) filha(o) ou sobrinha(o), aquisição de casa própria para a família em lugar com melhor acesso aos bens e equipamentos públicos, ou reformar a casa para dar mais conforto aos mais velhos.

Não há gastos com luxo, mas apenas com o necessário para enfrentar uma sociedade racista, sexista e classista. Só há códigos de sobrevivência porque há racismo e há sexismo. É simplista dizer que remunerar de maneira igual brancos e negros vai acabar com a desigualdade.  O racismo e o sexismo são extraeconômicos, razão pela qual o acúmulo de opressões faz que mulheres negras tenham ainda mais gastos para sobreviver do que as mulheres brancas. Não podemos pensar apenas no suprimento de necessidades básicas frente a esse conjunto de obrigações.

A pessoa negra, em regra, jamais irá ao shopping de chinelo, ou ao aeroporto com uma roupa qualquer. A mulher negra não vai acordar e simplesmente sair, ela pensa: qual é o ambiente em que estou indo? Qual é o caminho percorrido? Será que estou bem vestida? Meu filho está bem vestido na escola? Por último, é imprescindível carregar consigo o documento de identificação.

Portanto, se os dados constatam a dupla discriminação das mulheres negras, bem como o fato de que o direcionamento do dinheiro é distinto daquele escolhido pelas mulheres brancas, a ponto de promover maior precariedade e dificultar a vida das famílias negras, é fundamental implementar políticas públicas que atendam a esta demanda. A vida econômica sustentável pode ser materializada quando o orçamento público for direcionado aos grupos vulneráveis.[5] Por fim, o direcionamento do dinheiro das mulheres negras para produtos e serviços distintos das mulheres bancas não é uma questão individual ou culpa da má gestão financeira das mulheres negras, mas, é um problema estrutural e de ordem pública. É dever do Estado promover a igualdade e o combate à discriminação.

[1] ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é Racismo estrutural? Belo horizonte: Letramento, 2018.

[2] GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpoc, 1984, p. 223-244.

[3] DIEESE. Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos. Boletim Mulheres no Mercado de trabalho brasileiro: velhas desigualdades e mais precarização, 08 de março de 2022.

[4] SEBRAE. Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. Relatório Empreendedorismo raça-cor no Brasil, novembro de 2021.

[5] ITCN. Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário. Webinar “Mulheres Negras e o Direito à Vida econômica Sustentável”, 14/07/2022. Disponível em: (383) Webinar ITCN | Waleska Batista: Mulheres Negras e o Direito à vida econômica sustentável – YouTube. Acesso em: 27 de set. 2022.

*Waleska Miguel Batista é advogada, consultora de relações governamentais do Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário (ITCN). Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestra em Sustentabilidade e Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Integrante do Grupo de Pesquisa Estado e Direito no Pensamento Social Brasileiro (CNPq), pesquisadora sobre racismo, sexismo, pensamento social, direito e economia

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