Por Daniel Gerber
Artigo publicado originalmente no Estadão
As empresas no Brasil têm enfrentado profundos danos econômicos cada vez que seus gestores são investigados pela prática de delitos. Nem adianta a dogmática bradar que, pelo sistema jurídico brasileiro, a criminalização da pessoa jurídica é medida excepcional, pois a Operação Lava Jato explicitou, empiricamente, a relação umbilical do direito administrativo sancionador com o direito penal – e, consequentemente, a incidência – “de fato” – de variadas sanções criminais sobre a pessoa jurídica.
Muitos chegaram à conclusão, inclusive, de que uma sanção penal incidente sobre o “criminoso” se tornou incrivelmente mais benéfica do que uma sanção administrativa/cível imposta à PJ.
Em virtude das pesadas multas envolvidas em acordos de leniência, com o natural esgotamento econômico das empresas utilizadas nas atividades criminosas delatadas por seus integrantes de alto escalão, é preciso fazer algumas ponderações, a começar pela evidente impossibilidade de se pensar em uma defesa criminal de pessoas físicas investigadas por causa de suas funções empresariais, sem, primeiro se estabelecer com o Poder Público, em todas suas instâncias e instituições vinculadas ao caso, uma objetiva delimitação dos poderes gerais de punir a serem analisados, negociados e aplicados ao caso concreto.
Que se puna o agente do ilícito, e não centenas de outras pessoas que dependem, para sustento de suas famílias, do emprego e da relação comercial com a pessoa jurídica mal utilizada. Esse é, pelo menos, o mantra a ser seguido.
Significa dizer, por exemplo, que em caso de colaborações premiadas, acordos de não persecução ou litígio propriamente dito, tanto o poder persecutório penal e administrativo (MP, MPF, AGU, etc.) quanto o Poder Judiciário devem chegar a um consenso sobre como será tratada a PJ, independentemente de como serão tratados seus gestores.
Ela será encarada como mera extensão de seu titular e simples mascaramento de sua atividade criminosa? Ou será uma pessoa jurídica que, apesar das suspeitas que eventualmente se erguem contra seu(s) mandatário(s), detém independência e gera renda, empregos e circulação de serviços ou mercadoria? Essa distinção é fundamental, seja para bloquear tentativas de se passar para a pessoa jurídica a real responsabilidade de custear o processo e suas penas pecuniárias, seja para se evitar um dano social mais grave que o próprio delito.
Tem sido comum o requerimento – e seu respectivo deferimento – de medida cautelar por parte do Ministério Público, tanto em inquéritos penais quanto administrativos, objetivando bloqueio de bens e valores da empresa, tanto para (a) garantir ressarcimento de danos quanto para (b) satisfação de eventual pena pecuniária que surja de decisão condenatória transitada em julgado.
Também é corriqueiro, quando os delitos analisados envolvem a relação de uma empresa com o Poder Público, se (c) estimar como “dano” o valor total recebido pela pessoa jurídica durante a vigência do contrato.
Tais premissas e objetivos não são, contudo, dogmaticamente sustentáveis.
Primeiro, como se obrigar a pessoa jurídica a ressarcir um “dano” que surge, por exemplo, de uma fraude ao procedimento licitatório mediante corrupção de agente público, se, no curso da prestação de serviço, todos os indicadores de produtividade e preço estiverem satisfatórios? Que dano seria esse, na medida em que prestado o serviço, e pelo preço correto?
Ora, o dano que surge pela prática de um delito contra a lei de licitações, no exemplo acima trabalhado, não é estimável – e muito menos público, restringindo-se ao prejuízo causado para eventuais concorrentes que não venceram o certame (cabendo a elas eventual ação em esfera cível). O dano contra a administração, por sua vez (na corrupção de funcionário público), não é financeiro propriamente dito e, à toda evidência, não deve ultrapassar a pessoa de quem pratica o ato.
Retoma-se a questão, portanto: que dano a pessoa jurídica teria causado, apto a justificar o bloqueio de seu patrimônio?
A dogmática fica ainda mais maltratada quando se fala de bloqueio de valores para garantia de hipotético pagamento de pena de multa, pois bloquear-se valores da pessoa jurídica por crime praticado por pessoa física é, literalmente, ultrapassar, na pena, a pessoa do eventual condenado.
O tiro de misericórdia na técnica jurídica, entretanto, está no último ponto que aqui debatemos: se o serviço foi prestado (estando a fraude de nosso exemplo no momento pré-contratual), como afirmar que o dano está representado pela totalidade dos valores recebidos da administração pública? Vamos ignorar que mais de 90% do que as empresas recebem vai para pagamento de folha salarial, impostos, fornecedores? Na questão dos impostos, inclusive, como inclui-los no cálculo do montante total do dano, se o valor foi recolhido ao próprio Estado?
Essas circunstâncias exigem constante atenção e diálogo – mesmo em processos não negociais – dos atores processuais (advogado, juiz, promotor, procurador, etc.) envolvidos na lide. Não se pode confundir o capital da empresa com o de seu gestor – mesmo nas hipóteses de companhia limitada onde ele represente 99% das cotas sociais. Isso porque o valor da conta não é do sócio, do gestor, do executivo, e, sim, de funcionários e colaboradores que não devem sofrer pelo delito praticado por superior hierárquico. Sigamos evoluindo, sempre. Que se combata o corrupto sem se sacrificar o inocente.
Daniel Gerber é advogado criminalista com foco em gestão de crises e compliance político e empresarial, sócio-fundador dos escritórios Daniel Gerber Advogados Associados (Brasília-DF, Porto Alegre -RS) e Gerber & Guimarães Advogados Associados (Palmas -TO)