Por Hélio João Pepe de Moraes*
Artigo publicado originalmente no LexLatin
O cenário brasileiro tem mostrado que dizer o essencial é necessário. Assim, vale lembrar que Democracia é o sistema que permite que os governados, periodicamente, escolham os seus representantes. República é o amor pela Constituição. A Constituição Federal, esse famigerado documento que consolida a vontade do povo, é a regente do governo. Como sabemos, o governo na república brasileira se representa por três poderes, supostamente harmônicos e independentes. Dois deles representados de forma direta pela escolha popular.
Como será que esses poderes têm tratado a Constituição, digo a vontade do povo? Bem, começando pelo Congresso, em uma análise objetiva e simples (ignorando outras nuances possíveis nesta pontuação), é possível dizer que a vontade expressada na constituinte é cotidianamente relegada a segundo plano. A Constituição, como documento estratégico e plano de longo prazo para a sociedade, é alterada com uma frequência extraordinária, provavelmente a que mais recebe emendas em determinado tempo no comparativo internacional. Até a data deste escrito, são 125 emendas em 34 anos. A vontade originária expressada em 80% do texto já não vive em sua íntegra. Para se ter uma ideia comparativa, a Constituição Americana, que inspirou a nossa, tem 27 emendas em 235 anos.
Já o Poder Judiciário age de forma um pouco diferente. O texto normativo só encontra a sua verdadeira definição quando entregue para a análise do intérprete. No caso, a última análise é do Poder Judiciário, tal como ocorre na grande maior parte das democracias. O problema é que essa interpretação deveria encontrar dois limites: o sentido físico do texto (não dá para dizer que onde está escrito manga pode ser interpretado como banana) e a legitimação pela sociedade do que se interpretou.
Nesse processo natural de maturação do sentido do texto constitucional, fomos atingidos em cheio por um outro fenômeno contemporâneo: o famigerado ativismo constitucional. Entre outros exemplos possíveis, foi esse ativismo que incorporou no Brasil a Teoria do Domínio do Fato, utilizada de forma inaugural no julgamento do “Mensalão”, para incriminar diversos dirigentes partidários e autoridades governamentais. O ativismo constitucional também serviu para decidir que a “prisão em segunda instância” era aceitável, quando a Constituição expressamente preceitua trânsito em julgado. Depois, serviu para afastar a inelegibilidade da presidente alvo de impeachment. E, agora, em sua razão mais facínora, admite que a mesma pessoa seja presidente de inquérito (especialmente no tal Inquérito do Fim do Mundo), vítima e julgadora, a despeito do que diz a Constituição em sentido literal. Esse ativismo admite que o Supremo afirme sua competência para analisar suposta tentativa de golpe por particular, em conversa especulativa de WhatsApp, sem cargo no governo e sem foro especial.
Eis que surge uma questão: por que o Judiciário continua legitimado diante de decisões que excedem os limites de interpretação que o texto possibilita? Possivelmente porque a extrema adversidade da nossa sociedade (a dita polarização política) causa falsa sensação de legitimação de suas decisões.
Voltando aos exemplos acima, no julgamento do “Mensalão”, aqueles que eram opositores ao governo se fizeram silentes frente à expansão hermenêutica quanto ao que estabelecia o sistema de Direito Penal no Brasil. No julgamento da prisão em segunda instância, se prejudicava o ex-presidente, tudo valia. No julgamento de impedimento da presidente, ocorreu o mesmo. E, atualmente, os opositores ao atual presidente se calam quanto a diversos abusos praticados pelo Supremo contra os seus apoiadores. Boas exceções estão nos editoriais de alguns veículos tradicionais de mídia que já apontaram o problema.
Essa polarização é cega e desprende o cidadão do que deveria ser os seus verdadeiros amores institucionais: que o representante não fizesse nada além do que autorizado por lei e que esta lei fosse igual para todos.
Porém, o ovo da serpente está posto. Parece claro que há uma crise institucional quanto à legitimidade material de algumas decisões do Supremo.
A verdade é que expressiva parte dos juízes está assustada com a trilha seguida por seu órgão de cúpula. E como já dizia Rui Barbosa (e espero que quanto a ele não pairem dúvidas sobre o seu espírito democrático e republicano): “a pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”.
Curiosamente, na jornada constitucional desde 1988, aqueles que mais se ativeram ao texto constitucional (sem ignorar que eles tiveram sensível participação na criação das emendas e que foram ativistas do ativismo judiciário quando lhes interessava), foram os representantes do Executivo, de Sarney a Bolsonaro, passando por Lula e Dilma (que, convenhamos, foi impedida de governar mais pelo recall político do que pela alardeada pedalada). O fato é inusitado, pois nossa Constituição foi gestada no trauma da ditadura militar. Foi gerada pelo receio de que um representante do Executivo desviasse o seu poder institucional. Talvez tenhamos esquecido dos outros chefes de poderes.
Concluindo, não se cogita a fragilização institucional do STF à força tampouco se ignora a importância do órgão para a tutela da Constituição. O que se percebe e muito preocupa aos apaixonados pela democracia e república, é que o Supremo talvez tenha entrado num processo de deslegitimação silenciosa protagonizada por ele próprio. Cabe à sociedade e aos demais poderes a crítica e o auxílio na reconstrução de seu papel.
*Hélio João Pepe de Moraes é sócio do SGMP Advogados.