Por Rodrigo Quadrante*
Artigo publicado originalmente na ConJur
A reestruturação dos clubes de futebol foi um tema recorrente nos últimos meses, eis que diversos clubes deixaram de ser associações civis e se transformaram em Sociedades Anônimas do Futebol. A transformação societária de times como Cruzeiro, Coritiba, Botafogo, Vasco da Gama e Portuguesa nada mais é do que uma forma de se buscar a reestruturação das dívidas e a profissionalização destes clubes que se dedicam ao futebol.
Os clubes brasileiros, nos termos do estudo realizado pela Ernest Young em maio de 2022 [1], possuem um endividamento de dez bilhões de reais, sendo certo que a soma das dívidas do grupo dos 25 maiores clubes cresceu 63% nos últimos cinco anos. Logo, a necessidade de uma lei que permitisse a reestruturação das dívidas destes clubes era extremamente necessária, o que foi resolvido pela Lei 14.193, de 6 de agosto de 2021.
As Sociedades Anônimas do Futebol, nos termos do artigo 1º da Lei número 14.193/2021, são pessoas jurídicas de direito privado cuja principal atividade consiste na prática do futebol, feminino e masculino, se destinando estas sociedades às competições profissionais deste esporte.
A sociedade anônima dedicada ao desenvolvimento do futebol pode ser criada pela cisão do departamento de futebol, pela própria transformação do clube em sociedade anônima, ou ainda, por iniciativa de pessoa jurídica ou fundo de investimento, nos termos do artigo 2º da Lei 14.193/2021.
A grande questão tratada neste artigo decorre da eventual sucessão da Sociedade Anônima do Futebol com a pessoa jurídica original, aqui tratada como clube, e o eventual risco de terceiros investirem neste tipo de sociedade.
Isto porque as Sociedades Anônimas do Futebol, hoje, buscam a reestruturação das suas dívidas e obtenção de novos investimentos, o que pode levar torcedores apaixonados investirem milhões de reais nestas sociedades. Contudo, será que a estrutura da Lei 14.193/2021 é suficiente para proteger os interesses destes investidores?
Em primeiro lugar, faz-se necessário observar que o inciso 1º do artigo 2º da Lei 14.193/2021 é claro ao dispor que a Sociedade Anônima do Futebol sucede o clube nas relações com as entidades de administração do futebol, bem como nas relações contratuais de qualquer natureza, em especial, àquelas com os atletas profissionais.
O artigo 9º da Lei 14.193/2021 [2], por sua vez, ainda dispõe que a Sociedade Anônima do Futebol não responde pelas obrigações do clube, exceto aquelas obrigações que decorram do desenvolvimento da atividade do futebol. E mais, o artigo 12º da mesma lei proíbe a constrição do patrimônio e da receita da Sociedade Anônima do Futebol, enquanto ela repassar ao clube parte das suas receitas [3].
Ressalte-se que, ainda que a Lei 14.193/2021 disponha sobre a eventual sucessão da Sociedade Anônima do Futebol com o clube, é certo que a lei limita esta responsabilidade à 20% das receitas correntes mensais auferidas pela sociedade, ou ainda, 50% dos dividendos, ou, dos juros sobre o capital próprio que a sociedade pague aos seus acionistas, caso o clube seja acionistas da sociedade. Assim, ainda que a Lei 14.193/2021 limite tal responsabilidade da Sociedade Anônima do Futebol as porcentagens acima expostas, a verdade é que esta responsabilidade existe e a sociedade pode ser obrigada ao pagamento das dívidas do clube.
O Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, no julgamento de reclamação trabalhista que teve o Cruzeiro Esporte Clube como parte, decidiu que, caso o reclamante de uma demanda tenha participado da comissão técnica do time de futebol, a Sociedade Anônima do Futebol responde subsidiariamente às obrigações do clube, nos limites dos artigos 9º e 10º da Lei 14.193/21 [4].
Outra questão de grande importância ao tema objeto deste estudo decorre do entendimento de que o clube poderá ter a sua personalidade jurídica desconsiderada, em razão de eventual confusão patrimonial entre o clube e a Sociedade Anônima do Futebol, o que motivaria a solidariedade ilimitada entre as entidades.
Ora, este foi o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, em dois processos que tiveram o Botafogo Futebol S.A. como parte, tendo se entendido naqueles processos que existiria confusão patrimonial entre as entidades, o que permitiria a desconsideração da personalidade jurídica do clube e a solidariedade ilimitada das obrigações entre ele e a Sociedade Anônima do Futebol [5].
Como se vê, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, ainda que tenha entendido que haveria sucessão entre a Sociedade Anônima do Futebol e o clube, limitou a responsabilidade da sociedade aos valores que esta já seria obrigada a pagar ao clube, nos moldes do artigo 10º da Lei 14.193/2021.
No entanto, os casos julgados pelo Tribunal de Justiça do Paraná são mais preocupantes, pois concluíram que existiria confusão patrimonial entre a Sociedade Anônima do Futebol e o clube, o que permitiria a desconsideração da personalidade jurídica do clube e obrigaria a sociedade ao pagamento integral das dívidas do clube sem qualquer tipo de limitação.
Em segundo lugar, tem-se que a Lei 14.193/21 tratou do concurso de credores dos clubes ao estipular a possibilidade de estes adotarem o Regime Centralizado de Execuções, ou, a recuperação judicial ou extrajudicial como forma de organização do pagamento dos seus credores [6].
O clube, através do Regime Centralizado de Execução, alcançará a centralização das suas execuções em um único juízo e apresentará uma forma de pagamento dos credores que estiverem lhe executando, o que implicará na suspensão das respectivas execuções e das penhoras e bloqueios do seu patrimônio [7].
A aplicação do Regime Centralizado de Execução já foi tema de recursos perante o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo se entendendo pelo cabimento da centralização das execuções em um único juízo e a respectiva suspensão das execuções, ainda que o clube sequer tenha se transformado em uma Sociedade Anônima do Futebol [8].
Cumpre notar que, ainda que as execuções sejam suspensas pelo Regime Centralizado de Execução, elas continuarão a existir contra o clube, eis que o procedimento tem a finalidade de organizar o fluxo de pagamento dos credores e impedir a penhora de bens do clube e da Sociedade Anônima do Futebol, não implicado este procedimento na extinção das execuções, ou, na novação das dívidas do clube.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, através do julgamento de recurso apresentado pelo Fluminense Football Club, entendeu exatamente desta forma ao declarar que “não é prevista confusão ou reunião entre o Regime Centralizado de Execução e a Recuperação Judicial ou Extrajudicial. O Regime Centralizado de Execuções tem seu escopo limitado aos títulos executivos e deve ser manejado previamente. A Recuperação Judicial, por sua vez, afeta todas as obrigações do devedor constituídas até o ajuizamento do pleito” [9].
Ora, se as execuções não forem extintas e as dívidas não forem novadas, resta claro que o terceiro que adquirir qualquer bem do clube neste ambiente poderá ser alcançado pela anulação da sua aquisição por fraude a execução [10], caso os credores que tiveram as suas execuções suspensas não sejam pagos, o que, certamente, traz grande insegurança jurídica à aquisição de bens dentro deste contexto.
Como se vê, o Regime Centralizado de Execuções alcança apenas as obrigações que estão sendo executadas e não aquelas que, ainda que existam, sequer foram objeto de discussão judicial. O clube, através deste tipo de procedimento, não nova suas dívidas, ou ainda, obriga todos os credores existentes a aderirem a reestruturação dos seus créditos [11], o que pode motivar o descompasso entre o plano de pagamento apresentados aos credores e a realidade econômico-financeira do clube.
Em terceiro lugar, o artigo inciso 2º do artigo 2º da Lei 14.193/21 permite que a Sociedade Anônima do Futebol explore os ativos mobiliários, imobiliários e a propriedade intelectual do clube, podendo o clube incorporar estes bens e direitos na sociedade, recebendo ações em troca desta integralização.
A Sociedade Anônima do Futebol ainda poderá emitir debêntures para o desenvolvimento da atividade do futebol, ou ainda, para o pagamento de dívidas, não se restringindo tal emissão a investidores qualificados ou investidores profissionais [12].
O que se tem até aqui é a possibilidade de o clube criar uma sociedade que desenvolva a atividade do futebol, transfira seus bens e direitos a esta sociedade e emita dívidas no mercado financeiro. No entanto, é certo que a Sociedade Anônima do Futebol poderá ser alcançada pelas dívidas do clube anteriores a sua criação.
A adoção da recuperação judicial pelo clube, por sua vez, é o procedimento correto para a proteção do investidor neste tipo de operação. Isto porque o procedimento de recuperação judicial poderá impedir que as dívidas do clube alcancem a Sociedade Anônima do Futebol, ou ainda, a estrutura criada por este investidor para o desenvolvimento das atividades relacionadas ao futebol.
Como se sabe, o artigo 13 da Lei 14.103/21 permite que o clube busque o pagamento dos seus credores e a sua reorganização através da recuperação judicial, ao passo que os artigos 60 [13] e 142 da Lei 11.101/2005 permitem que o clube aliene seus bens e direitos em processo competitivo para o pagamento dos seus credores sem que o adquirente destes bens seja alcançado pelas dívidas do clube.
A alienação de bens, através da organização de Unidades Produtivas Isoladas, não é tema novo e já se pacificou que não há sucessão entre as dívidas da sociedade em recuperação judicial com os bens alienados em processo competitivo dentro do procedimento de recuperação judicial [14].
Cumpre notar que já se questionou até a constitucionalidade do artigo 60 e 142 da Lei 11.101/2005, tendo o ministro Ricardo Lewandowski afastado a inconstitucionalidade dos referidos artigos e declarado a não sucessão dos créditos trabalhistas das empresas em recuperação judicial com o terceiro que adquiriu os ativos da sociedade devedora [15].
Por todo o exposto, conclui-se que a Lei 14.103/21, por si só, não protege o terceiro interessado que tenha o interesse em investir em uma Sociedade Anônima do Futebol contra as dívidas do clube, podendo os valores investidos por este terceiro, bem como os bens adquiridos por ele, serem alcançados pelos credores originais do clube.
No entanto, a recuperação judicial do clube, caso seja adotada, é medida que dará maior segurança ao terceiro interessado que invista no clube, eis que todas as dívidas e obrigações existentes serão alcançadas por este procedimento, o qual lhes novará, existindo grande harmoniza entre o plano de pagamento dos credores com a realidade econômico-financeira do clube.
Além disto, os bens adquiridos pelo terceiro, através da criação de Unidades Produtivas Isoladas, os quais serão alienados em processo competitivo dentro do processo de recuperação judicial, não serão alcançados pelas dívidas do clube, o que dará, certamente, a segurança jurídica almejada pelo investidor, a qual não será encontrada na Lei 14.103/21.
[2] Artigo 9º A Sociedade Anônima do Futebol não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas conforme disposto no inciso 2º do artigo 2º desta Lei, cujo pagamento aos credores se limita à forma estabelecida no artigo 10 desta Lei.
[3] Artigo 10 O clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores á constituição da Sociedade Anônima do Futebol, por meio de receitas próprias e das seguintes receitas que lhe serão transferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, quando constituídas exclusivamente: I por destinação de 20% das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores; II – por destinação de 50% dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista.
[4] Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, relator desembargador Marco Antonio Paulinelli de Carvalho, Recurso Ordinário Trabalhista 0010036-87.2922.5.03.0110.
[5] Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, desembargador Luiz Mateus de Lima, Agravo de instrumento número 0076967-36.2021.8.16.0000 e Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, Des. Lauro Laerte de Oliveira, Agravo de instrumento número 0019097-33.2021.8.16.0000.
[6] Artigo 13 – O clube ou pessoa jurídica original poderá efetuar o pagamento das obrigações diretamente aos seus credores, ou, a seu exclusivo critério: I- pelo concurso de credores, por intermédio do Regime Centralizado de Execuções previsto nesta Lei, ou, II – por meio de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei 11.101/2005.
[7] Artigo 14 da Lei 14.193/21.
[8] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, relator desembargador Silvério da Silva, agravo de instrumento número 2155211-29.2022.8.26.0000, Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, relator desembargador Helda Lima Meireles agravo de instrumento número 0010355-98.2022.8.19.0000, e Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, relator desembargador Henrique Carlos de Andrade Figueira Agravo de instrumento número 0078735-13.2021.8.19.0000.
[9] Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, relator desembargador Henrique Carlos de Andrade Figueira, Recurso de Agravo Interno nos autos do Regime Centralizado de Execuções número 0078735-13.2021.8.19.0000.
[10] Inciso 2º do artigo 792 do Código de Processo Civil.
[11] Artigo 21 da Lei 14.193/21
[12] Artigo 26 da Lei 14.193/21
[13] Artigo 60. Se o plano de recuperação judicial aprovado envolver alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização, observado o disposto no artigo 142 desta Lei.
Parágrafo-único. O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista, observado o disposto no §1º do artigo 141 desta Lei
[14] Superior Tribunal de Justiça, relator desembargador Raul Araújo, Conflito de competência número 161.042.
[15] A exclusão da sucessão torna mais interessante a compra da empresa e tende a estimular maiores ofertas pelos interessados na aquisição, o que aumenta a garantia dos trabalhadores, já que o valor pago ficará à disposição do juízo da falência e será utilizado para pagar prioritariamente os créditos trabalhistas. Além do mais, a venda em bloco da empresa possibilita a continuação da atividade empresarial e preserva empregos (STF-Pleno, Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3.934-2/DF, relator ministro Ricardo Lewandowski, julgamento em 27/05/2009, DJ 06/11/2009)
*Rodrigo Quadrante é advogado, mestre pela PUC-SP e sócio do escritório Leite, Tosto e Barros Advogados Associados.