Por Conrado Gontijo*
Artigo publicado originalmente no Jota
A exigência de imparcialidade dos juízes recebeu destaque no debate nacional nos últimos anos, principalmente em razão da condução ilegal da Operação Lava Jato. Ao reconhecer a suspeição do ex-juiz Sergio Moro, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a indissociabilidade entre o devido processo legal e a imparcialidade dos julgadores.
Ainda, para assegurar o respeito à garantia do juiz imparcial, expôs o ministro Gilmar Mendes, ao julgar o HC nº 164.493, ser imperioso “que o sistema preveja e desenvolva fórmulas que permitam o afastamento, a exclusão ou a recusa do juiz que, por razões diversas, não possa oferecer a garantia de imparcialidade”.
Nesse contexto, o Código de Processo Penal e o Código de Processo Civil contemplam disciplina das hipóteses de impedimento e de suspeição, bem como dos instrumentos de impugnação que poderão ser utilizados pelas partes sempre que houver circunstâncias que coloquem em dúvida a imparcialidade do julgador.
No caso da suspeição, prevê-se que se o juiz não a reconhecer de ofício, caberá à parte arguí-la tão logo tenha ciência de fato que possa gerar incerteza sobre a garantia de imparcialidade. Caso o julgador não admita a suspeição, deverá demonstrar, fundamentadamente, que goza de imparcialidade para realizar o julgamento.
Destarte, se for julgada procedente a arguição, devem ser reputados nulos os atos processuais praticados pelo suspeito, o qual, ademais, na hipótese de sua tentativa de continuar atuando no feito decorrer de erro inescusável, ou de ser manifesta sua suspeição, ficará obrigado ao pagamento de custas.
A condenação do juiz nas custas tem o objetivo de evitar que as partes ou o Estado suportem as consequências de erro perpetrado por magistrados; erro que provenha de sua equivocada interpretação das circunstâncias que revelariam sua parcialidade, nunca de má-fé: aqui, nada mais do que as sanções processuais e o envio dos autos ao substituto legal do suspeito é necessário para a correção dos rumos do feito e para o resgate do devido processo legal.
Essa hipótese, todavia, não se equipara àquela em que o juiz parcial sustenta sua imparcialidade por meio da omissão dolosa de elementos da realidade indicativos de sua parcialidade, ou por meio da proposital apresentação, aos órgãos competentes, de informações falsas sobre, por exemplo, sua relação com as partes e seus advogados.
Ao manifestar-se sobre sua imparcialidade, o julgador deve apresentar razões tecnicamente embasadas e, ainda que sua suspeição seja manifesta, não poderá mentir sobre fatos nem omitir circunstâncias do tema que possam ser relevantes.
A título exemplificativo, se se recusa um juiz que seja amigo de uma das partes, ele poderá sustentar que a amizade não é íntima ou que não impacta sua imparcialidade, mas não poderá negar a existência da relação; caso se aduza que o magistrado mantém parceria com os advogados de uma parte, ele poderá expor as razões pelas quais tal parceria não interfere no exercício de suas funções, contudo, não poderá — se a relação existiu ou existe — negá-la nem silenciar sobre ela.
Por conseguinte, o magistrado que deliberadamente omite informações ou as presta falsamente, para afastar questionamento sobre sua imparcialidade, não apenas deve ser condenado ao pagamento das custas, como também investigado, pelo menos, pela prática do crime de falsidade ideológica (artigo 299 do Código Penal).
Pelo menos, porque, caso se verifique que sua conduta dolosa foi motivada por solicitação ou recebimento de vantagem indevida, ou praticada para atender pedido ou influência de alguém, é possível que tenha havido corrupção, nos termos previstos no artigo 317 do Código Penal; se a apresentação de informações falsas ou a omissão deliberada objetivar a satisfação de interesse ou sentimento pessoal do julgador, tem-se possível a ocorrência de prevaricação, tipificada no artigo 319 do mesmo diploma.
Sobre esses aspectos, o ministro Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC nº 84.492/RJ, destacou que, “no tocante à solução das questões de direito (…) não há cogitar de falsidade”. Contudo, diversa é “a hipótese em que o prolator insere na decisão asserção falaciosa de um fato (…): aí, já não vejo como elidir de plano a configuração da falsidade ideológica, quando não haja elementos que induzam à sua absorção por crime diverso”.
Cumpre mencionar que, também no procedimento arbitral, referida lógica deve prevalecer. Afinal, “o árbitro é juiz de fato e de direito” das demandas que são submetidas à sua apreciação, e, “quando no exercício de suas funções ou em razão delas, fica[m] equiparado[s] aos funcionários públicos, para os efeitos da legislação penal”.
Evidentemente, se optar por sustentar sua imparcialidade, e o fizer por meio do uso intencional de informações falsas ou da omissão deliberada de dados relevantes para a análise da matéria, o árbitro poderá responder pela prática de crimes: lançando mão de informações falsas para, mesmo suspeito, manter-se julgador, ele compromete seriamente a garantia da imparcialidade, menospreza e viola com enorme gravidade a fé pública e a administração pública, e o próprio prestígio do instituto da arbitragem.
A possibilidade da prática de atos criminosos por árbitro ocorre também, vale registrar, no momento prévio à instalação do procedimento arbitral, quando a lei o obriga a revelar às partes “qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência”: exige-se que os dados expostos no ato da revelação sejam completos, não, obviamente, sobre qualquer relação do árbitro com as partes e seus advogados, mas sobre qualquer relação entre eles que possa denotar “dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência”.
Caberá à parte avaliar os fatos revelados e decidir se confia na imparcialidade do árbitro. Quem decide se as revelações têm relevância são as partes, o que torna imprescindível que a transparência seja ampla e lhes confira meios efetivos para exercer substancialmente seus direitos e fazer impugnações.
O árbitro, pois, submete ao escrutínio das partes fatos que deverão ser por elas conhecidos, para que definam o seguinte: confiamos no julgador e o aceitamos para examinar o caso, ou devemos recusá-lo por ser eventualmente parcial? Para isso, a revelação há de ser abrangente, sob pena de que o processo arbitral, no qual atuam profissionais altamente prestigiados, se torne pouco transparente e perca credibilidade com a quebra da confiança de que ele merecidamente desfruta na sociedade.
Em suma, juízes e árbitros têm deveres claros de apresentação de informações verdadeiras sobre sua imparcialidade. Se, para sustentar sua permanência como julgador, utilizarem-se de informações falsas, ou omitirem dados essenciais para o exame de sua eventual suspeição, poderão responder pela prática de crimes: não se pode admitir, por gravemente afrontosa à fé pública e à administração pública, manipulações da verdade dirigidas à violação da garantia do juiz imparcial.
Conrado Almeida Corrêa Gontijo é doutor e mestre em Direito Penal pela USP. Professor do IDP-SP