Por Lenio Luiz Streck*
Artigo publicado originalmente no Estadão
Toda vez que o defensor esgrimia, em plenário, a tese da legítima defesa da honra, eu, Promotor de Justiça, respondia: “- Senhores Jurados, a honra não está no meio das pernas”. Meio clichê, reconheço. Mas é o que se tinha.
O tempo foi passando e a discussão chegou ao STJ e STF. Aos poucos, os tribunais encaminham entendimento da vedação do uso da tese da legítima defesa da honra.
O Parlamento resolveu intervir na discussão. O Senado encaminha a aprovação de projeto de lei alterando o Código Penal, para, entre outras vedações do uso como atenuante, impedir o uso da tese da legítima defesa da honra como argumento para absolvição, pelo Tribunal do Júri, de acusado de feminicídio.
Sei que a medida não será bem recebida pelos defensores dessa especialidade. Dizem que a Constituição, ao estabelecer a soberania do Tribunal do Júri, garante o uso de qualquer argumento. Não concordo e explico na sequência.
Hoje, o júri decide por íntima convicção, o que afronta o artigo 93, inciso X, da CF. Em uma República, ninguém pode perder a liberdade por um “não” sem fundamentação. A democracia veda “sins” e “nãos” baseados em “íntima convicção”. Para evitar o “solipsismo judicial”.
E esse é o problema central de teses como a legítima defesa da honra. Basta achar que o réu matou para defender a sua honra e não será necessário explicar.
Aliás, a tese da soberania plena é uma aporia. Afinal, de que modo se pode aferir se o jurado absolveu alguém por clemência, pena, raiva da vítima ou legítima defesa da honra? Ora, a íntima convicção já é uma tese antijurídica. Daí minha pergunta:
“Se se decide por íntima convicção, já não é mais direito. Afinal, o que é o direito senão o filtro institucional das íntimas convicções…?”
Na verdade, o furo é mais embaixo. O Parlamento tem de ir mais longe e discutir o nó górdio do júri, como acima falei: o problema da íntima convicção. Se não podemos saber as razões pelas quais os jurados disseram sim, vamos sindicar a tese defensiva? Ou revisar os autos? Mas o recurso é sobre o quê? O recurso é da decisão. E a decisão, nos moldes atuais, não há como saber de suas razões. Decisão sem ratio. Como objetar aquilo que dispensado está de apresentar as razões que servem de fundamento?
Esse é o busílis. A alternativa: reformar. Não há proibição constitucional de exigir fundamentação dos jurados. O que é cláusula pétrea é o sigilo das votações. Íntima convicção não tem previsão constitucional. É possível transformar o júri por simples lei ordinária. Aury Lopes Jr e eu concedemos entrevista à Revista Conjur (aqui) e defendemos essa reforma.
O júri espanhol, para usar o exemplo, garante e exige motivação por parte dos jurados, que respondem quesitos em um formulário próprio, relacionadas ao processo, culpabilidade do acusado e comprovação dos fatos. Claro que lá não existe esse “quesito genérico” (o réu deve ser absolvido?). A deliberação será secreta e as portas cerradas e nenhum jurado poderá revelar o que nela ocorreu. Já a votação é nominal, em grupo e em voz alta, por ordem alfabética, votando por último o jurado escolhido como porta-voz (o primeiro a ser sorteado). O quórum de condenação não é maioria simples.
Numa palavra final: é correta a alteração do Código. Só que temos de ir mais longe. A Constituição não veda alterações no júri. Ao contrário: exige.
*Lenio Luiz Streck, jurista, professor de Direito Constitucional, pós-doutor em Direito e sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados