A Lei 14.334, de 10 de maio, determina a impenhorabilidade de bens de hospitais filantrópicos e Santas Casas de Misericórdia mantidos por entidades beneficentes (devidamente certificadas nos termos da Lei Complementar nº 187, de 16 de dezembro de 2021).
A impenhorabilidade compreende os imóveis sobre os quais se assentam as construções, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem o bem, desde que quitados. Apenas fogem desta regra obras de arte e ‘adornos suntuosos’.
O texto diz que os bens dessas entidades não responderão por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, salvo nas seguintes hipóteses: para cobrança de dívida relativa ao próprio bem, inclusive daquela contraída para sua aquisição; e execução de garantia real; em razão dos créditos de trabalhadores e das respectivas contribuições previdenciárias.
Para Fernando Tardioli, especializado em recuperação de crédito e sócio do escritório Tardioli Lima Advogados, trata-se de um convite à inadimplência. “Qual será o estímulo que essas entidades terão para cumprir com suas obrigações junto a instituições bancárias e credores de insumos e serviços a elas prestados?”.
Tardiolli lembra que qualquer pessoa física ou jurídica que não quita as suas dívidas pode ter seus bens penhorados. “É mais uma razão que torna insustentável o propósito dessa lei”.
De acordo com o artigo 789 do Código de Processo Civil vigente, o devedor deve responder com todos os seus bens, presentes e futuros, para o cumprimento de suas obrigações. “Desse modo, além de afrontar claramente a legislação processual em vigor, a Lei 14.334 ainda concede uma proteção ilimitada e indiscriminada aos hospitais filantrópicos e Santas Casas de Misericórdia, independentemente de os bens possuírem relação com os serviços prestados à população ou não”, analisa o advogado.
Ainda segundo o advogado, o texto da lei também deixou de observar que o Código de Processo Civil já traz em seu artigo 833 um extenso rol de bens considerados impenhoráveis, de modo que não havia necessidade de estender tal impenhorabilidade a todo e qualquer bem. Ele lembra que “a impenhorabilidade sempre se deu em hipóteses restritas e em razão da natureza do bem e jamais de seu proprietário”.
Tardiolli observa que a proteção total e indiscriminada do patrimônio dessas intuições não guarda nenhuma relação com o direito à saúde devido pelo Estado, previsto no artigo 6º da Constituição Federal. “Trata-se, na verdade, de um verdadeiro tiro no pé, que fará desaparecer o crédito e o financiamento bancário oferecido à entidades de saúde filantrópicas”, completa.
De acordo com o especialista, a lei ainda vai de encontro com a previsão contida no artigo 4º do Código de Processo Civil, que garante aos litigantes a solução integral do mérito, de forma satisfativa e em tempo razoável. O advogado questiona novamente: “Como os credores dessas instituições conseguirão reaver o crédito que têm direito se não há possibilidade de penhora de qualquer bem? A frustração das ações é algo totalmente previsível. Isto sem falar na inconstitucionalidade da nova legislação, na medida em que traz tratamento discriminatório, assegurando a tais entidades uma espécie de imunidade executiva, que sem sombra de dúvidas, viola a garantia constitucional, insculpida no princípio da isonomia, previsto no artigo 5º da Constituição Federal”, aponta Tardioli.
Nem mesmo o Fisco ficou isento da proteção concedida pelo legislador. Embora o artigo 186 do Código Tributário Nacional determine que o crédito tributário prefere a qualquer outro (exceto os decorrentes de relação trabalhista), a Lei 14.334 assegurou a mesma impenhorabilidade mesmo quando o crédito derivar de tributos ou contribuições previdenciárias não pagas. “Diante de tamanho absurdo e de sua constitucionalidade duvidosa, não é difícil predizer o futuro e cravar que a legislação em questão não sobreviverá à análise de sua constitucionalidade”, finaliza.