Opinião

A injustiça das custas nos Juizados Especiais

Gratuidade em 1º grau de jurisdição esbarra em questões extremamente técnicas

20 de junho de 2022

Por Murilo Ferreira e Ricardo Alves*

Artigo publicado originalmente na ConJur

Os Juizados Especiais Cíveis representam aproximadamente 56% da demanda da Justiça Estadual em nosso país, segundo dados do “Diagnóstico dos Juizados Especiais” do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Portanto, é o maior facilitador de acesso à justiça para toda população, tornando a prestação jurisdicional mais acessível, rápida, simples e eficaz.

Com forte apelo popular, a gratuidade em 1º grau de jurisdição incentiva a propositura de demandas, as mais variadas, que muitas vezes fogem até mesmo da competência originária do Juizados Especiais. Objetivamente, o que se pode dizer é que essa “gratuidade” facilitadora nos Juizados, que permite democraticamente o acesso à justiça, em segundo grau de jurisdição, ou seja, para interposição do recurso inominado contra a sentença, esbarra em questões extremamente técnicas que muitas vezes são verdadeiro transtorno para as partes, advogados e até mesmo juízes.

A opção pelos Juizados Especiais não significa que as partes não terão custos. Esse é um ponto muito importante, que nem todo cidadão ou cidadã que busca o Juizado tem conhecimento. Ocorre que, ao ingressar no Juizado, seja assistido ou não por advogado, as custas e honorários ficam suspensos até a sentença (artigo 54 da Lei 9.099/95), salvo os casos de concessão de gratuidade de justiça ao recorrente.

Portanto, quando a tramitação do processo terminar em primeiro grau de jurisdição, logo após o juiz proferir a sentença, as custas são dispensadas no âmbito dos Juizados Especiais (artigo 55, da Lei 9.099/95). Havendo recurso, necessariamente haverá cobrança das custas (salvo a exceção já citada).

Desta forma, indiscutivelmente até a promulgação da sentença estão bem evidentes os princípios que norteiam os Juizados: celeridade, simplicidade e economia processual. Entretanto, em sede de recurso o quadro se altera e pode-se observar um choque de realidade entre esses princípios, com exigência de técnica processual e imposição da rigidez da Lei e, pior, Enunciados que em muitos casos prejudicam não só o acesso ao Judiciário, mas também fazem morrer o bom direito.

Destaque-se que apesar de parecer uma problemática de fácil solução, esbarra em muitos obstáculos que o operador do direito que milita no âmbito dos Juizados precisa enfrentar para que um Recurso Inominado seja levado a julgamento.

O primeiro deles é a complexidade no preparo das custas processuais para interposição do referido recurso. Nos Juizados Especiais, o preparo do recurso compreende o recolhimento do preparo recursal propriamente dito, bem como das custas processuais relativas ao primeiro grau de jurisdição e deve ser feito no prazo de até 48 horas seguintes à interposição, independentemente de intimação, sob pena de deserção, consoante previsto no artigo 42, §1º, c/c o artigo 54, parágrafo único, da Lei nº 9.099/95.

É exatamente nesse momento que o tema se torna um pouco mais controvertido. A deserção do Recurso Inominado, combinada com a complexidade no recolhimento das custas, com a aplicação restrita da Lei e de Enunciados, bem como o complexo preenchimento da respectiva guia, diferente em cada Estado, trazem a problemática abordada nesse tema. Se a parte recorrente apresenta o comprovante de pagamento das custas processuais e do preparo fora do prazo legal, impõe-se a deserção. Sendo o prazo contado minuto a minuto, ultrapassado o horário, ainda que em minutos, incide o recurso em deserção, conforme artigo 125, §4º, do Código Civil de 1.916, e artigo 132, §4º, do Código Civil de 2002.

Diante dessa sistemática, no 49º Fonaje (Fórum Nacional de Juizados Especiais), realizado em 2022, esse tema foi abordado na Sala Temática de Uniformização de Jurisprudência (TUJ) e Gestão de Precedentes. Alguns magistrados demonstram desconforto em determinar a deserção de um recurso, muitas vezes pela diferença de centavos no preparo. A ideia inicial seria a revogação expressa do Enunciado nº 80 do próprio Fonaje, que regula de maneira rígida o assunto.

 “Enunciado Cível nº 80 do Fonaje

O recurso Inominado será julgado deserto quando não houver o recolhimento integral do preparo e sua respectiva comprovação pela parte, no prazo de 48 horas, não admitida a complementação intempestiva (artigo 42, §1º, da Lei 9.099/1995) (nova redação — XII Encontro Maceió-AL)”.

 A sensibilidade de alguns magistrados leva à tona a nova dinâmica na dualidade entre o acesso facilitado ao Judiciário, as inovações tecnológicas advindas com a pandemia, mas também coloca sob tensão a relação entre os princípios que regem os Juizados Especiais Cíveis e o que se entrega efetivamente ao jurisdicionado em termos práticos. O que se observa, como dito anteriormente, nesse enunciado em sua dialética simples, revestido do cunho célere, não só dificulta, retarda e mitiga o bom direito, como impede o acesso à Justiça de forma fria e descompromissada. Quando se afirma isso, não se está fazendo referência aos magistrados que têm o dever de aplicar as ferramentas que dispõem, a Lei ou Enunciados e normas pertinentes, mas ao sistema — que precisa de ajustes imediatamente.

Seguindo nos debates, a maior parte dos juízes se manifestou no sentido de se manter o enunciado na forma que se encontra hoje, já que se trata de uma questão técnica e que cabe exclusivamente ao advogado realizar o recolhimento correto do preparo. Entretanto, não poderia esse debate ter ocorrido em momento tão propício, especialmente relativo ao tema do próprio Fonaje deste ano: “Juizados Especiais na Era Digital: inovação, efetividade e acesso à Justiça”. Nos trabalhos e palestras apresentados no Fonaje, inúmeras foram as demonstrações práticas da utilização da tecnologia pelo Judiciário, como na criação de robôs, inclusive com IA (inteligência artificial), não só para gerenciar, agilizar, prevenir fraudes e efetivar o andamento do processo, mas também para permitir a humanização da prestação jurisdicional e redução de custos. E por que não certificar as custas previamente?

Na sala temática, foi então sugerido um contraponto que unisse os interesses de todas as partes, jurisdicionados (sempre o objeto de todos os trabalhos, pois em sua maioria são os principais afetados pela rigidez do sistema), advogados e magistrados. A ideia não era simplesmente a revogação do citado enunciado, mas sim sua reconstrução, sua adaptação à evolução das relações processuais, da evolução sistêmica dos Tribunais e, principalmente, prestigiando o acesso democrático à Justiça.

Todos sabem da aplicação subsidiária do Código de Processo Civil à Lei 9.099/95. O artigo 1.007 do CPC, em seus parágrafos trata especificamente do recolhimento de custas recursais, que poderia substituir adequadamente a parte final do Enunciado 80 do Fonaje.

É preciso agora entender o artigo 1.007 do CPC e sua aplicação na prática na sistemática dos Juizados, bem como a substituição final do Enunciado nº 80 do Fonaje.

Nos parágrafos do artigo 1.007, o legislador trouxe várias hipóteses relativas ao recolhimento das custas processuais. Dentro da sugestão discutida na sala temática, poder-se-ia introduzir na parte final do Enunciado nº 80, vários dos parágrafos descritos no artigo do CPC. Entretanto, bastaria aproveitar o §7º do referido artigo.

Considerando que o Plenário do CNJ decidiu que, a partir de 1º de março de 2022, os tribunais brasileiros só poderiam receber processos eletrônicos, determinação tomada na 338ª Sessão Ordinária do CNJ, realizada dia 21 de setembro de 2021, na análise do Ato Normativo 0006956-27.2021.2.00.0000, relatado pelo presidente do CNJ, ministro Luiz Fux, seria perfeitamente possível ao cartório, no momento da interposição do Recurso Inominado, certificar o valor correto das custas, de forma automática, indicando especificadamente os valores aos campos pertinentes da guia a ser recolhida. Diante dos mais variados sistemas de gerenciamento e andamentos processuais em funcionamento hoje em dia, como o PJe, e-Proc etc., após a certificação cartorária automática, a guia poderia ser paga no prazo de 48 horas após a sua disponibilização via sistema e intimação do advogado.

Portanto, o Enunciado nº 80 do Fonaje teria a seguinte redação:

O recurso Inominado será julgado deserto quando não houver o recolhimento integral do preparo e sua respectiva comprovação pela parte, no prazo de 48 horas. Ocorrendo equívoco no preenchimento da guia de custas não implicará a aplicação da pena de deserção, cabendo ao juiz ou relator, na hipótese de dúvida quanto ao recolhimento, intimar o recorrente para sanar o vício no prazo de cinco dias. Na forma do §7º do artigo 1.007 do CPC”.

Nesse passo, o que se busca alcançar com essa modificação? Seria uma solução que traria mais garantias para os jurisdicionados? Traria mais tranquilidade para o magistrado, que não se veria mais em conflito diante de uma questão técnica? Alcançaria o fim social de proporcionar o acesso à Justiça de uma forma mais simples, eficiente e dinâmica diante das inovações tecnológicas que visam facilitar o gerenciamento de processos e automação das ferramentas dos tribunais? A resposta é sim!

Considerando-se que cada tribunal adota ferramentas diferentes, além do PJE, ainda utilizando sistemas processuais antigos, essa modificação no referido Enunciado, atrelada ou não à certificação prévia do valor das custas, facilitará em todos os Juizados do país, a partir de um mecanismo eficiente e extremamente facilitador, o preparo das custas do Recurso Inominado.

Pode-se citar como exemplo o Tribunal do Estado do Rio de Janeiro, onde a questão é um pouco mais complexa em razão da dificuldade no preenchimento da guia (Grerj). Nesse particular, os juízes demonstraram certa sensibilidade e certo pesar, até se poderia dizer, ao julgar deserto um recurso por uma diferença de centavos. A modificação proposta trará uma análise mais sensível, justa, célere e simplificada.

Essa solução na alteração do Enunciado nº 80 do Fonaje se coaduna com a essência de um dos princípios básicos do Juizado, o da simplicidade. Tal princípio traduz, na prática, a opção dos jurisdicionados e dos operadores do direito em eleger os Juizados Especiais, como o Órgão do Judiciário que mais facilmente possibilita o acesso ao Judiciário.

Tendo em vista tudo o que foi abordado no próprio Fonaje, essa alteração trará, sem sombra de dúvidas, um importante passo para que se implemente de forma justa, equilibrada e facilitada não só o acesso ao Judiciário de forma simplificada, mas também a aderência da inteligência artificial e da automação, tão necessárias e úteis, às ferramentas dos tribunais do país.

Murilo Ferreira é advogado especialista em sustentações orais e líder da equipe de performance jurídica do escritório Fragata e Antunes Advogados.

Ricardo Alves é DPO e sócio responsável pela área de Tecnologia e Inovação do escritório Fragata e Antunes Advogados.

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