Por Cecilia Mello e Maria Amélia Campos Ferreira
Artigo publicado originalmente na ConJur
A pandemia causada pela Covid-19 vem exigindo dos governos ao redor do mundo ações fortes e coordenadas, aproximando-as ao esforço de guerra. No Brasil, a situação não é diferente.
As medidas de enfrentamento ao vírus envolvem uma série de restrições a direitos previstos na Constituição. O estabelecimento de quarentena e isolamento afetam, principalmente, o direito de ir e vir dos cidadãos, além de restrições nos transportes, não só de pessoas, como também de insumos. No entanto, não é possível observar uma coordenação entre os governos federal e estaduais. As ações dos governos locais são justificadas publicamente em razão da inação do Executivo central. O fato é que os decretos estaduais parecem, muitas vezes, avançar sobre a competência da União.
O governador do Rio de Janeiro expediu o Decreto 46.980/2020 determinando, entre outras medidas, no artigo 3º, incisos IX, X e XI, a restrição de transporte interestadual de passageiros com origem em estados em que foi confirmada a circulação do vírus; a restrição de transporte aeroviário de passageiros internacionais e de passageiros provenientes de Estado onde confirmada a circulação do vírus; e, ainda, a proibição de atracação de navios de cruzeiro advindos do países e estados da federação com presença confirmada do vírus. O governador submeteu a ratificação das medidas às agências reguladoras dos meios de transporte em questão Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).
Em outra ponta, o governador do estado do Maranhão, no Decreto 35.677/2020, determinou a suspensão de serviços não essenciais por 15 dias. No entanto, afirmou, em entrevista coletiva, que não tomou medidas visando a restrição de transporte aeroviário por ser de competência da União. A Procuradoria-Geral do Estado ajuizou, assim, ação contra a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroviária (Infraero) e Anac visando a suspensão do transporte aeroviário de passageiros. A medida liminar foi negada, mas, a Justiça Federal autorizou que barreiras sanitárias fossem instaladas nos aeroportos do estado para monitoramento da chegada de novos casos.
Já o governador de São Paulo, no Decreto 64.881/2020, estabelece a quarentena no estado, determinando restrições em todas as atividades consideradas não essenciais. Ao contrário de outros chefes do Executivo estadual, não decretou a restrição no transporte de passageiros, apenas a recomendou, no artigo 4º, que a circulação de pessoas no estado se limite às necessidades imediatas de alimentação, cuidados de saúde e exercício de atividades essenciais.
As determinações divergentes dos governadores demonstram ações não coordenadas de entes da federação na tentativa de conter a propagação do vírus. A situação é ainda mais caótica no que se refere aos municípios com ações locais de restrição de circulação. Vale menção à ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público contra o estado de São Paulo para restringir, cautelarmente, a entrada de turistas em Ubatuba, nos termos do Decreto municipal 7.310/2020. O juízo estadual concedeu a liminar e determinou inclusão da União no feito pelo fato de a BR 101(Rio-Santos) ser uma rodovia federal. Os autos foram remetidos ao juízo federal, que revogou a liminar por violação do direito constitucional de ir e vir, bem como do princípio da separação dos poderes, invocando, não somente a Constituição, como também a recente Medida Provisória 926/2020.
A Constituição estabelece as competências legislativas e materiais dos entes federados visando, não só a sua organização, como também a concretização dos fundamentos, princípios e objetivos do Estado brasileiro.
Ao mesmo tempo, os estados e os municípios são responsáveis solidariamente pelo Sistema Único de Saúde, conforme estabelece o artigo 198, além da competência material de cuidar da saúde e assistência públicas prevista no artigo 23, inciso II, ambos da Constituição Federal. Nesse cenário, há que se perquirir se as medidas tomadas pelos governadores não estão de acordo com a responsabilidade constitucional de “garantir, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (artigo 196 da Constituição).
Também a Lei 13.979/2020, promulgada em fevereiro deste ano, dispondo sobre medidas de enfrentamento da Covid-19, delega atribuições para os gestores locais. O artigo 3º elenca ações que podem ser adotadas por autoridades no âmbito de sua competência. O parágrafo 7º, inciso II, do mesmo dispositivo determinada quais medidas necessitam de autorização do Ministério da Saúde para que sejam tomadas.
O governo federal editou a Medida Provisória 926/2020, alterando o artigo 3º, inciso VI, da Lei 13.979/2020, para que a excepcional restrição de entrada e saída do país e de locomoção interestadual e intermunicipal só deve ocorrer por recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O parágrafo foi incluído para fazer constar que a medida citada deve ser tomada por ato específico precedido de articulação entre o ente concedente e órgão regulador.
A medida foi mal recebida por muito setores, especialmente, por governadores e prefeitos, entendendo que houve uma centralização indevida da União. O PDT (Partido Democrático Trabalhista), inclusive, ajuizou ADI (Ação Direita de Inconstitucionalidade), dia 23/03/2020, e requereu a suspensão liminar das alterações feitas pela medida provisória citada. A cautelar foi concedida parcialmente apenas para reafirma a competência concorrente dos entes federados.
No mesmo dia em que foi ajuizada a ADI, a Anvisa expediu a Resolução- RDC 353 delegando aos órgãos de vigilância sanitária dos Estados e do Distrito Federal a competência para elaborar a recomendação técnica introduzida pela Medida Provisória 926/2020.
A situação é diferente a cada dia e as ações das três esferas de governo tentam acompanhar a rapidez com que o vírus se propaga. Na tentativa de combater a pandemia, pelo que se percebe, foi estabelecido o caos normativo. A ausência de medidas drásticas do governo central, ocasionando decretos dos governos estaduais e municipais, estabelece uma diversidade de determinações que, muitas vezes, não são harmônicas. Não obstante, a competência concorrente dos entes federados foi reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal sem, no entanto, descuidar da coordenação que a situação exige.
Cecilia Mello é criminalista, sócia do Cecilia Mello Advogados. Foi desembargadora federal por 14 anos no TRF-3.
Maria Amélia Campos Ferreira é advogada do Cecilia Mello Advogados, especialista em Direito do Estado.