Por Renata Belmonte*
A relação dos seres humanos com os animais tem se tornado cada vez mais próxima. Inegavelmente, na pandemia, esses tiveram grande importância na saúde mental de muitos tutores, que viam em seus companheiros um subterfúgio neste período de isolamento social que assolou o mundo. Inclusive, no começo da pandemia, o número de adoções de pets subiu astronomicamente. Muitas pessoas encontraram em seus animais verdadeiros companheiros, tratados como membros de suas famílias.
Contudo, no âmbito jurídico, os animais ainda são vistos de modo bem diferente e não como sujeitos de direitos. Isso porque, à luz do Código Civil, os animais são bens fungíveis e semoventes, cujo regime jurídico é disciplinado pelo direito das coisas.
Por mais que para um tutor seja difícil de compreender essa distinção, fato é que precisamos realinhar os eixos. No cenário jurídico recente, temos vistos diversas demandas nas quais animais são parte da ação, e, diante desse novo cenário, algumas decisões foram prolatadas de modo conflitante.
Em São Paulo, cujo tribunal é referência no nosso ordenamento jurídico, e tido por conservador, a questão é vista de modo mais tradicional. Isso porque, em decisão recente, o desembargador relator, ao analisar um recurso de pedido de inclusão de 30 cachorros no polo ativo da demanda, alertou para necessidade de se ter mais seriedade ao lidar com o Judiciário.
O relator viu com maus olhos o pleito e ponderou que “o desempenho dessa elevada função exige seriedade e respeito, sem espaço para invenções ou gracinhas, tais como a que aqui se vê na petição, que serve para suposta ‘contestação’ por parte de ‘animais caninos’ ou nas próprias razões de apelação, onde incrivelmente se procura defender a ‘capacidade processual de animais”.[1]
A questão já chegou também à Justiça do Rio Grande do Sul, que seguiu diretriz semelhante à da Corte paulista. Ao tentar se ver ressarcido de danos que sofreu em um pet shop, o cão Boss, da raça shihtzu, teve seu acesso à justiça negado. Seu advogado, contudo, pautou o pedido de manutenção de Boss no polo ativo da ação, uma vez que a lei estadual n°15.434/2020, em vigor naquele estado, classifica os animais como sujeitos de direitos despersonificados.
Todavia, nem em sede recursal Boss teve sorte. Ao analisar os termos do agravo, os desembargadores reafirmaram a ausência de capacidade postulatória dos animais. Ponderaram que “ainda que a legislação constitucional e infraconstitucional, inclusive a estadual, garanta aos animais uma existência digna, sem crueldade, maus tratos e abandono dos casos dos de estimação, ela não lhes confere a condição de pessoa ou personalidade jurídica.”
Em meados do ano passado, o debate chegou à corte paraibana. Lá, se aproximando dos entendimentos acima, da mesma forma se reconheceu a falta de legislação que preveja a capacidade postulatória dos animais.
Já o tribunal baiano tentou mitigar o embate ao se deparar com 23 gatos, representados por sua tutora, processando uma construtora. Ao reconhecer a falta de legislação pertinente, mas a boa intenção das partes, o magistrado marcou audiência de mediação, que restou infrutífera. Assim, ao ter de enfrentar o tema, o magistrado, por fim, reconheceu a falta de condição da ação em razão da ausência de capacidade postulatória dos felinos, e, por consequência, extinguiu o feito. Os gatinhos, no entanto, inconformados, já apresentaram seu recurso de apelação, pendente de decisão pela Corte superior.
Já no Paraná, numa decisão inovadora, foi dado provimento unânime a um agravo de instrumento interposto pelo tutor, a fim de reintegrar os animais no polo ativo da ação. O desembargador relator ponderou que cada vez mais a família contemporânea vem adotando animais como verdadeiros membros da família. Ressaltou, ainda, que a Declaração de Toulon, elaborada em março de 2019, previu que “os animais devem ser considerados tal como pessoas, e não coisas, além de que, por consequência, a qualidade de pessoa no sentido jurídico deve ser reconhecida aos animais”. Dessa forma, concluiu que os animais possuem personalidade jurídica, podendo, portanto, figurar no polo ativo da demanda.
Todavia, fica o questionamento: os animais não têm, portanto, direitos a serem tutelados e protegidos? Claro que têm! Nós, como tutores, temos deveres e obrigações. Nossos animais têm o direito de ter uma vida livre de maus tratos, com zelo, amor, carinho e cuidado, tal qual temos com nossos entes queridos.
O ministro Luis Felipe Salomão, em julgamento que abordava os direitos dos animais, ponderou que “os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como ser senciente – dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais -, também devem ter o seu bem-estar considerado”[2].
Observem que os direitos dos nossos animais não são subestimados na justiça. Todavia, se pondera que eles devem ser perseguidos na figura do seu tutor, ante a ausência de reconhecimento de capacidade jurídica dos animais.
Mas isso pode estar prestes a mudar, já que tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 145/21, que visa alterar o dispositivo do Código de Processo Civil, a fim de conceder aos animais capacidade postulatória, sendo representados pelo Ministério Público, Defensoria Pública, associações de proteção aos animais ou por quem os tenha na sua tutela. O projeto, de autoria do deputado Eduardo Costa, foi apresentado em 03/02/2021 e aguarda apreciação da Câmara.
[1] (TJ-SP – AC: 10002357220208260252 SP 1000235-72.2020.8.26.0252, Relator: Gilberto dos Santos, Data de Julgamento: 10/05/2021, 11ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 10/05/2021)
[2] STJ – REsp: 1713167/SP2017/0239804-9, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de julgamento: 19/06/2018, T-4 – Quarta Turma, DJE: 09/10/2018