Por Nelson Wilians*
Artigo publicado originalmente na Folha
E eis que de repente boa parte do mundo tem um vilão para odiar, ou para amar?
O palhaço do crime, o Thanos e o Loki, para ficarmos nesses mais recentes anti-heróis do cinema, que muitas vezes roubam a cena e ganham até a simpatia de parte do público.
Verdade seja dita, os Estados Unidos gostam de ditar (poderia ter usado um palavrão) regras ao mundo, porém, nunca fizeram um mea-culpa oficial em relação ao Vietnã, ao Iraque, à Síria e ao Afeganistão, apenas para ficar nos mais gritantes exemplos de intervenção indevida na soberania alheia.
Existe um jogo de xadrez político e, a meu ver, foram dar pretexto ao líder russo, o que ele queria, para fazer o que está fazendo. Querer que a Ucrânia faça parte da Otan não difere muito do motivo da Crise dos Mísseis de Cuba, também conhecida como Crise de Outubro, Crise do Caribe, que foi um confronto de 13 dias (de 16 a 28 outubro de 1962) entre Estados Unidos e União Soviética, relacionado à implantação de mísseis balísticos soviéticos em Cuba.
Além de ter sido televisionado ao mundo, foi o mais próximo que se chegou ao início de uma guerra nuclear em grande escala durante a Guerra Fria.
É importante e vital ter a lucidez que o movimento das tropas russas é uma forma de equilibrar as forças diante do envio ao longo de vários anos de tropas da Otan em torno dos países da Europa Oriental. Não é de hoje que a Otan vinha realizando exercícios militares com soldados ano após ano junto à Ucrânia, incluindo Sea Breeze e Rapid Trident.
Agora, não se deve justificar um erro com outro. E Putin ultrapassou os limites políticos e militares ao invadir a Ucrânia.
Envolto nos mistérios de um espião da extinta União Soviética, Vladimir Putin encarna agora o vilão que deve ser combatido. Com seu olhar insonso que parece contemplar continuamente o nada, o grande mandatário russo é um enigma que força o Ocidente a desvendá-lo enquanto ele viola tratados de fronteiras, de direitos humanos e faz ameaças com seu arsenal nuclear.
Que o digam Joe “Batman Biden” e seus “Robins” aliados europeus, com as mãos e os pés amarrados em uma cadeira. “Como vamos sair dessa?” Devem constantemente se perguntar um ao outro.
Não é fácil, pois Putin (permita-me a intimidade) é o Coringa e reúne as mais insanas características humanas. E, justamente por isso, pode ser extremamente imprevisível e impor uma nova ordem.
Podemos até achar alguma graça em determinados vilões, mas, no final, o mocinho ou o que é certo deve prevalecer. Os seres humanos estabeleceram regras de convivência social pacífica. Evoluímos da barbárie para a civilização. Isso custou muito sangue e muita diplomacia.
Putin quer roubar a cena e ser protagonista, afinal o exterminador russo é uma forte purgação intestinal na conflituosa relação de influência entre as poderosas nações.
Também não posso deixar de compará-lo a Roy Batty, o replicante androide autoconsciente, interpretado por Rutger Hauer, principal antagonista em “Blade Runner”, de 1982. Não só por sua aparência robótica, mas porque, na KGB, Putin nasceu em servidão de um sistema, assim como Batty.
Putin, porém, é uma personalidade mais complexa, que reúne características de outros vilões cinematográficos, entre eles Hannibal Lecter, interpretado por Anthony Hopkins em “O Silêncio dos Inocentes”, de 1991, que, psicótico, se deleita praticando o canibalismo e no caso, criando uma certa tensão internacional.
Com certeza, em seus tempos de espião, Putin aprendeu muitas técnicas para moer carne humana, como o fez anos depois na Síria, onde sua campanha aérea brutal tirou a vida de inúmeros civis; na Líbia, para onde ele enviou mercenários; e, ainda mais recentemente, no Cazaquistão.
Mas, sobretudo, com seu imenso poderio nuclear, Putin é o novo Thanos — o icônico assassino do cinema moderno que utiliza uma série de razões toscas para eliminar metade de toda a vida no universo. Sim, ele encobre o seu desejo de poder com a narrativa de que está defendendo interesses russos, mas o fato é que não aceita a rejeição por parte de uma nação vizinha que demonstra determinação em construir uma sociedade democrática, desalinhada com seus interesses, e com pretensões de estreitar os laços com o Ocidente, por já ter padecido com as agressões russas.
Por trás daquela aparência serenamente abobalhada que passa nas gravações de TV permitidas por ele — com diálogos ensaiados com seu staff de marionetes —, quando as câmeras são desligadas, surge o verdadeiro eu de Putin: alguém que pode quebrar a frágil paz mundial.
Quando diz “ajudar” os chefes das autoproclamadas República Popular de Donetsk e República Popular de Lugansk, que teriam alegado sofrer agressões crescentes das forças ucranianas, Putin busca aparentar ser um nobre, à moda Luís 14, claro, que reinou por cerca de 72 anos e que em seu próprio leito de morte teria dito: “Eu amei demais a guerra”.
Putin com certeza o tem como reflexo, já está há mais de duas décadas no poder, se intercalando nos cargos de presidente e primeiro-ministro. Porém, imagino que um dos grandes ensinamentos de Luís 14 absorvidos por Putin deva ser: “Em todo tratado, inserir uma cláusula que possa ser facilmente violada, para que todo o acordo possa ser quebrado caso os interesses do Estado assim o tornem conveniente”.
Putin vem levando essa artimanha ao pé da letra ao violar, convenientemente, uma série de compromissos e tratados assinados pela Rússia como membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas e provocar uma ruptura nunca vista desde a Segunda Guerra Mundial.
Sinceramente, é de assombrar.
Em direito temos o delito de exercício arbitrário das próprias razões, previsto no Código Penal, que está assim tipificado: “Art. 345 – Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite”.
Ainda que legítimo o interesse russo em não ter a Otan instalada no país vizinho, como os Estados Unidos não queriam a antiga União Soviética com mísseis em Cuba, a invasão é injustificável. É um atentado ao Estado Democrático de Direito e à soberania de um povo. Esperamos que esse “filme” acabe da melhor maneira possível, como em um roteiro hollywoodiano, com o vilão da vez contido e a paz restabelecida.
*Nelson Wilians é empreendedor e advogado
Foto: Emerson Lima