Opinião

A importância do dinheiro em espécie diminuiu?

Numerário tem a função social de inserir as classes mais pobres na economia

Por Theófilo Miguel de Aquino*

Artigo publicado originalmente na Gazeta do Povo

O ecossistema de pagamentos brasileiro passa por transformação significativa atualmente? Uma pessoa desavisada que acompanhe apenas superficialmente as notícias poderia responder que sim. De fato, existem várias novidades quando se fala em opções disponíveis para realizar transferências de recursos. Mas é importante prestar atenção: isso não significa que houve mudança nas preferências da população, tampouco que as novidades são integralmente positivas.

O Banco Central do Brasil (BC) tem agenda agressiva de reformas com a finalidade de digitalizar o ecossistema de pagamentos brasileiro. Ao menos na versão oficial, essas medidas contribuiriam para aumentar a competitividade e a inclusão financeira na economia brasileira. É nesse contexto que se inserem o arranjo de pagamentos Pix e o projeto de Real digital.

Não faltam personagens na sociedade interessados em estimular a versão oficial de que realizar transações e fazer pagamentos no Brasil nunca mais será a mesma coisa de agora em diante. No entanto, quando o discurso é muito efusivo, é sempre interessante analisar os dados. Sem dúvida, o volume de transações do Pix aumentou muito desde seu lançamento, em novembro de 2020. Mas como não aumentaria, se antes o arranjo simplesmente não existia?

Por outro lado, o que aconteceu com o dinheiro em espécie no mesmo período? É simples: a quantidade de numerário em circulação no Brasil não apresenta tendência de diminuição. Em 24 de dezembro de 2021, o BC identificava pouco mais de 7,5 bilhões de cédulas de real em circulação. Em 24 de dezembro de 2018, havia pouco mais de 6,6 bilhões, segundo o BC. É aumento de quase 1 bilhão de cédulas em circulação em exatamente três anos.

O valor, em reais, do dinheiro em espécie em circulação é ainda maior na comparação histórica. Em abril de 2020, o BC identificava R$ 279 bilhões em numerário em circulação. Com o auxílio emergencial, o valor total subiu 34%, para R$ 366 bilhões em dezembro de 2020. Desde então, houve diminuição de 10% para R$ 331 bilhões – ou seja, atingindo patamar ainda superior ao cenário pré-pandêmico.

Com a estruturação do Auxílio Brasil em substituição ao auxílio emergencial, é provável que esses valores permaneçam nesses patamares ou aumentem ainda mais. E por quê? Pelo fato inegável de que os brasileiros preferem pagar com dinheiro em espécie. Segundo pesquisa do Instituto Locomotiva em 2021, quase metade dos brasileiros (44%) afirma que o numerário é o meio de pagamento mais utilizado no seu dia a dia. Esse porcentual salta para 65% se consideradas apenas as classes D e E. Além disso, quase um terço (28%) dos brasileiros recebe parte ou a totalidade de sua remuneração mensal no formato de dinheiro em espécie.

Os motivos apontados para utilizar o dinheiro físico têm muito a ver com a crise econômica e o aumento da inflação no país. São apontadas a possibilidade de obter descontos no pagamento (51%) ou de negociar o preço (45%), praticidade (40%), maior facilidade no controle de gastos (35%) e ausência de taxas (34%). O usuário do dinheiro está preocupado em pechinchar descontos para itens básicos de sobrevivência. Portanto, não só o numerário permanece com popularidade e capilaridade na economia brasileira, como seu uso aponta para características de classe e para importante função social do dinheiro em espécie.

As inovações tecnológicas não foram capazes de atingir extratos menos privilegiados da sociedade brasileira. Afinal, as dificuldades de acesso à internet no Brasil não podem ser subestimadas. O Pix está sendo implementado em contexto em que 26% dos brasileiros não haviam se conectado à internet em 2019, segundo a Pesquisa TIC Domicílios. Entre a população analfabeta ou com nível educacional infantil, somente 16% das pessoas haviam acessado a internet naquele ano. Todos esses dados ratificam a percepção de que a digitalização de meios de pagamento não foi capaz de refrear a preferência do brasileiro por dinheiro em espécie.

Para responder à pergunta do título: a importância do dinheiro em espécie não diminuiu. Ao contrário, em tempos de pandemia e de crise econômica, sua função social de inserção das classes mais pobres na economia brasileira só aumenta e desmente quem acredita que o futuro guarda lugar exclusivo para a economia digital.

Theófilo Miguel de Aquino é doutorando em Direito e Desenvolvimento, e consultor em relações governamentais do Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo do Numerário (ITCN).

Foto: Raphael Ribeiro/BCB

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