Opinião

Pandemia forçou a revisão dos negócios e relações jurídicas

Deve prevalecer a proporção equânime entre as partes contratantes

27 de dezembro de 2021

Por Dyna Hoffmann Assi Guerra*

Artigo publicado originalmente na ConJur

O contexto da pandemia trouxe à tona uma realidade que forçou a revisão das relações e dos negócios jurídicos. As consequências sociais e econômicas foram drásticas e passou a ser até imoral tirar vantagem de uma das situações mais graves que o mundo passou (e ainda passa) nos últimos 20 meses.

Diante deste cenário, o princípio do equilíbrio econômico-financeiro nas relações jurídicas, tão aclamado no Direito Privado, foi destacado em diversas decisões proferidas — inclusive em matérias que tratavam de direito do consumidor — pelos principais Tribunais de Justiça do Brasil, assim como pelo Superior Tribunal de Justiça.

O princípio do equilíbrio econômico-financeiro é aquele em há permanente equivalência entre a obrigação assumida e a compensação econômica que lhe corresponderá. Como é aplicado à relação, todas as partes envolvidas no contrato se beneficiam dele.

Infelizmente, tal princípio foi deveras maculado quando se tratava de relação de consumo, porém, fazendo uma retrospectiva de importantes decisões proferidas neste ano de 2021 vimos que o panorama foi outro.

“Salvo disposição contratual expressa, os planos de saúde não são obrigados a custear o tratamento médico de fertilização in vitro.” Essa foi a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento dos Recursos Especiais nº 1851062, nº 1822420 e nº 1822818, no rito de recursos repetitivos.

No julgamento, citando diversos precedentes da 3ª e da 4ª Turmas do STJ — ambas especializadas em Direito Privado —, o ministro Marco Buzzi ressaltou que a solução da controvérsia sobre a obrigatoriedade ou não da cobertura exige uma interpretação de acordo com a finalidade da norma, de forma a garantir que as operadoras de saúde não sejam obrigadas a custear procedimentos que são de natureza facultativa, segundo a lei aplicável ao caso e a própria regulamentação da ANS, causando assim um claro desequilíbrio entre as obrigações do plano e o valor pago por ele pelo consumidor.

Não se trata aqui de infringir o Código de Defesa do Consumidor, mas de consolidar o princípio do equilíbrio econômico-financeiro e da liberdade de contratar. É importante que o consumidor entenda a equivalência entre o que ele paga e as obrigações do plano. E mais: se o plano tiver que pagar além do contrato e previsto atuarialmente esse custo se reverte para a universalidade de contratantes.

Uma outra decisão importantíssima, desta vez proferida pelo Supremo Tribunal Federal pela relatora ministra Rosa Weber, foi em relação a inconstitucionalidade das decisões judiciais que impuseram descontos em mensalidades de universidades durante pandemia.

Foi precisa a análise da relatora de que a concessão de descontos nas decisões judiciais não analisou o impacto sofrido também pelas instituições de ensino, mas tão somente o viés do consumidor.

As instituições de ensino, além de investimentos que precisaram fazer para continuidade das atividades de maneira remota, não previstos em seus orçamentos, tiveram uma significativa inadimplência acrescida de evasão escolar e nada disso foi sequer levantado nas decisões de concessão de desconto em uma clara afronta ao princípio do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de prestação de serviço educacional.

Uma das características deste contrato é a sua onerosidade, ou seja, a obtenção do proveito econômico auferido em decorrência do acordo celebrado. No caso das instituições de ensino da iniciativa privada, é justamente de receber o montante das mensalidades devidas em decorrência da prestação dos serviços escolares.

Ora, se as instituições de ensino se adaptaram, investiram em tecnologia e equipamentos, se adequaram com todo aparato para atender protocolos de higiene estabelecidos, não se pode perder de vista que, para que haja segurança jurídica nos contratos, faz-se imprescindível que os consumidores cumpram o negócio com lealdade, honestidade, probidade, honradez, confiança recíproca, ou seja, procedam com boa-fé.

As decisões analisadas pelo STF ignoravam isso e, portanto, maculavam o princípio do equilíbrio econômico-financeiro nessas relações, sem analisar as peculiaridades de caso a caso.

Um outro tema que merece ser relembrado, muito embora ainda não tenhamos um pronunciamento unânime e publicizado dos tribunais superiores, é a alta estratosférica do IGP-M e a utilização deste índice nos contratos — especialmente de aluguel — como fator de correção monetária.

Assim como os assuntos abordados previamente, trata-se de uma consequência da pandemia, porém, para além disso, vale o aprofundamento. Primeiro porque a alta do IGP-M é histórica, especialmente se comparada aos anos anteriores e aos outros índices de correção. Segundo porque, com a desvalorização do real, a inflação nacional e a alta precificação mundial de commodities, tal índice perdeu a característica de recomposição do poder aquisitivo da moeda nacional e passou a ter viés de onerosidade excessiva.

Terceiro porque, com o aumento de mais de 40% em relação a 2019, o IGP-M passou a não se mostrar plausível e adequado à maioria dos negócios jurídicos que lhe elegiam como índice de correção. Isso porque o índice de correção deve refletir as mudanças das práticas de mercado e que, por sua vez, relacionam-se ao tipo de negócio, em consonância ao inciso I, do artigo 113 do Código Civil. Trata-se do princípio da boa-fé objetiva.

Neste aspecto o próprio IGP-M que é composto dos seguintes índices: Índice de Preços do Atacado (60%), o Índice de Preços do Consumidor (30%) e o Índice Nacional de Custo da Construção (10%), desvirtua-se de boa parte das atividades regidas nos contratos em que ele adotado como fator de correção.

Ora, se o que se aluga é um imóvel totalmente pronto, seja residencial, seja comercial, por que inserir na correção os custos com a construção que já foi concluída? O STJ já tem entendimento da possibilidade de intervenção do Estado Juiz nas relações privadas para manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, como decidido no Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.543.466, porém, o tema substituição do IGP-M pós pandemia ainda não teve um posicionamento das cortes superiores.

Na elaboração do contrato, imperiosa se faz a vontade das partes, as quais acordam com termos e cláusulas que virão a ser aplicados no negócio jurídico. É certo, portanto, que desde o momento da concepção do instrumento até aquele em que as partes permanecem aderindo as suas condições, não é a lei, nem o juiz, que determinam o índice adequado aos casos, bem como se extrai do artigo 421, parágrafo único, do Código Civil:

“Art. 421. […]

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)” (grifo nosso)

Contudo, haverá situações nas quais, diante da excepcionalidade do caso e visualizando a impossibilidade de resolução contratual (que deve ser a última opção a ser adotada pelos contratantes), surge como ferramenta remanescente a intervenção jurisdicional. Não se trata de mácula à livre iniciativa e autonomia das partes, princípios que defendemos rigorosamente, mas sim de uma excepcionalidade diante de extraordinários — e, portanto, imprevisíveis — casos concretos que demonstram claramente um desequilíbrio econômico-financeiro na relação.

O que deve prevalecer, além da autonomia da vontade das partes, a liberdade de contratar e da boa-fé objetiva é a proporção equânime entre as partes contratantes, o equilíbrio entre o custo e o benefício. E foi esse o entendimento exposto pelos Tribunais Superiores neste ano de 2021, em relação aos temas aqui abordados.

Dyna Hoffmann Assi Guerra é advogada, sócia e CEO do SGMP Advogados.

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