Opinião

O IOF, a discriminação de rendas e o desvio de finalidade

Majoração do IOF deu-se de forma arbitrária e ferindo a discriminação constitucional de rendas

1 de outubro de 2021

Por Hamilton Dias de Souza e Hugo Funaro

Artigo publicado originalmente no Jota

O Decreto nº 10.797/2021 aumentou a alíquota do IOF para operações de crédito realizadas entre 20 de setembro e 31 de dezembro de 2021. Como informa o Ministério da Economia[1], a elevação temporária foi motivada pelo “fim do Auxílio Emergencial e a necessidade legal de indicar fonte para o programa Auxílio Brasil, sucessor do Bolsa Família, e reduzir a fila de espera pelo benefício”, que “acarretará um acréscimo na despesa obrigatória de caráter continuado em R$ 1,62 bilhão neste ano[2].

A medida resultou em aumento do dólar e queda da Bolsa, em decorrência da apreensão dos agentes econômicos com a adoção de medidas heterodoxas pelo governo visando contornar as regras de controle de gastos e os mecanismos legais para aumento de receitas tributárias, com objetivos eleitorais.

Sem embargo das considerações políticas, econômicas e sociais que o tema suscita, sob o ângulo jurídico, o aumento do IOF por decreto presidencial afigura-se inconstitucional, em face da inadequação entre o objetivo visado e os ditames legais.[3]

Com efeito, a Constituição discrimina as fontes para a obtenção dos recursos necessários à execução de serviços públicos pelos entes políticos. Tal se dá mediante a outorga de competência para a instituição de determinados tributos e a partilha no produto de sua arrecadação.

Ao assim dispor, o texto constitucional tem duplo aspecto: positivo, por definir a parcela dos recursos que pertence a cada ente; negativo, por impedir a percepção de tributos fora das hipóteses nele previstas.

Nesse contexto, a discriminação de rendas tributárias deve ser vista, ao mesmo tempo, como pilar da Federação e como barreira de proteção dos contribuintes contra investidas fiscais.

Por se tratar de obrigação de caráter compulsório, a instituição e o aumento de tributos sempre decorrem de lei aprovada pelo Congresso Nacional. Há certos impostos, porém, cujas alíquotas podem ser alteradas pelo Poder Executivo, em virtude de seu caráter eminentemente regulatório.

Mesmo nesse caso, devem ser “atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei” (CF, art. 153, §1º), o que significa que o texto legal deve ser restritivo e jamais uma “carta em branco” para a Administração[4], porquanto o exercício atípico de função legislativa só se justifica para atender certos objetivos de interesse público, inconfundíveis com o mero aumento da carga tributária.

Seguindo essa diretriz, a Lei nº 8.894/94 autoriza o Poder Executivo a alterar as alíquotas do IOF “tendo em vista os objetivos das políticas monetária e fiscal” (art. 1º, parágrafo único)[5]. O conjuntivo “e” deixa claro que a calibragem do imposto deve atender aos dois objetivos de forma simultânea, não se justificando a sua majoração por razões arrecadatórias inerentes à política fiscal, sob pena de tornar ilimitada competência que só se admite seja exercida de forma excepcional e de desfigurar o perfil regulatório do tributo delineado no texto constitucional.

Aliás, o Código Tributário Nacional, que dispõe sobre as matérias contidas no art. 146 da Constituição, dentre as quais as limitações ao poder de tributar, reforça que, sem prejuízo de outras condições previstas em lei, só cabe alterar o IOF por ato administrativo “a fim de ajustá-lo aos objetivos da política monetária”.

Logo, o ajuste deve ter em mira regular comportamentos, de modo a produzir efeitos não só sobre as receitas públicas, mas, principalmente, sobre os rumos da economia, visando assegurar a estabilidade da moeda. Nesse caso, o tributo atua como instrumento de execução de políticas públicas, ficando a função arrecadatória (inerente a qualquer tributo) em segundo plano[6].

Assim, o ato normativo que altere a alíquota do IOF deve ser motivado, mediante a demonstração da existência, no plano dos fatos, das condicionantes legalmente previstas. A motivação pode estar no próprio ato ou fora dele, mas lhe deve ser prévia ou contemporânea, de modo a permitir a aferição quanto ao atendimento dos pressupostos legais, sob pena de reputar-se arbitrária a atuação do Poder Executivo e ilegítima a medida por este adotada.

É que, ao agir de forma imotivada ou para atender interesses governamentais estranhos aos objetivos das políticas monetária e fiscal, a Administração invade o campo reservado ao Poder Legislativo e altera a discriminação de rendas prevista na Constituição, que não lhe autoriza agir como bem entenda.

Nesse contexto, resta evidente a ilegalidade perpetrada pelo decreto que majorou temporariamente o IOF com o objetivo declarado de criar uma nova fonte de receitas para que o governo federal possa implementar “o programa Auxílio Brasil, sucessor do Bolsa Família”, ainda no ano de 2021.

O desvio de finalidade é nítido, pois não se teve em mira o controle da moeda, a contenção da inflação, ou qualquer outro objetivo ligado às políticas monetária e fiscal. O que se pretendeu foi atingir objetivo diverso do previsto em lei: executar uma despesa nova para distribuir recursos à população de baixa renda, com o nítido objetivo eleitoreiro, às vésperas do pleito de 2.022.

É certo que o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a majoração do IOF levada a efeito pela Portaria 348/1998 para compensar a perda da arrecadação da CPMF, decidiu que “a receita de impostos compõe as reservas necessárias para fazer frente a qualquer despesa uti universi” e “não haver óbice a que se pretenda, na busca pelo incremento de arrecadação, compensar a perda relativa à extinção de um tributo por intermédio da majoração de outras exações” [7].

Isso significa que, após ingressar nas burras estatais, o produto da arrecadação do IOF pode ser destinado a qualquer finalidade pública. Em nenhum momento, porém, a Suprema Corte disse que o referido imposto possa ter sua arrecadação vinculada a certa despesa ou que o Poder Executivo tenha liberdade para majorá-lo sem atender às condicionantes legais, até porque isso feriria não só a letra da Constituição, como a racionalidade do sistema tributário.

Vale dizer, o incremento da receita do IOF poderia compensar gastos com programas sociais, porém, desde que o imposto tivesse sido majorado por motivos inerentes às políticas monetária e fiscal como exige a lei, o que, como visto, não ocorreu.

Portanto, a majoração do IOF deu-se de forma arbitrária e ferindo a discriminação constitucional de rendas, em decorrência do desvio de finalidade do ato administrativo, caracterizado pela inadequação entre os meios e os fins previstos na Constituição Federal, na medida que a atuação do Poder Executivo desconsiderou as condições legalmente estabelecidas para a graduação da alíquota do referido tributo.

[1] Disponível em: <https://www.gov.br/economia/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/2021/setembro/governo-federal-eleva-temporariamente-aliquota-do-imposto-sobre-operacoes-financeiras-iof>. Acessado em 18 de setembro de 2021.

[2] O Ministério da Economia explica, ainda, que “a arrecadação obtida com a medida custeará ainda as propostas de redução a zero da alíquota da contribuição para o PIS/Cofins incidente na importação de milho, com impacto de R$ 66,47 milhões no ano de 2021 e o aumento do valor da cota de importação pelo CNPQ, que acarreta renúncia fiscal no valor de R$ 236,49 milhões no ano de 2021”.

[3] Para um exame mais aprofundado do tema, remete-se o leitor ao artigo do autor Hamilton Dias de Souza intitulado “Ainda a Racionalidade como Limitação ao Poder de Tributar: Impossibilidade de Utilização do IOF como Sucedâneo da CPMF”. In: FERRAZ, Roberto Catalano Botelho (coord.). Princípios e Limites da Tributação 2 – Os princípios da Ordem Econômica e a Tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 655-674.

[4] Aliomar Baleeiro adverte que “Não vale o ato do Poder Executivo se a lei o não autoriza. Não tem eficácia a lei, para esse fim, se não estabelece condições e limites, dentro dos quais deve agir o Poder Executivo. A lei, em tal caso, não pode ser uma carta branca, que equivaleria, então, à delegação de atribuições dum Poder a outro Poder, prática constitucionalmente defesa (art. 6°, parágrafo único)” (Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7ª ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 64).

[5] A política monetária consiste no “controle oficial do sistema bancário e monetário para a estabilização da moeda” (Silva, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 1.057). Já a política fiscal reflete “o conjunto de medidas pelas quais o Governo arrecada receitas e realiza despesas de modo a cumprir três funções: a estabilização macroeconômica, a redistribuição da renda e a alocação de recursos.” Disponível em: <https://www.gov.br/tesouronacional/pt-br/estatisticas-fiscais-e-planejamento/sobre-politica-fiscal>. Acessado em 20 de setembro de 2021.

[6] Nesse sentido o voto proferido pelo Ministro Carlos Veloso, nos autos do RE 225.602-8/CE: “A Constituição excepciona o princípio da legalidade relativamente à majoração de alíquota. É que tais impostos (IOF, II e IE) têm natureza extrafiscal. São mais instrumentos de realização de políticas governamentais e menos forma de arrecadação ou de ingresso de dinheiro nos cofres públicos” (DJ: 06.04.01 – destacamos).

[7] RE 800.282 AgR, rel. min. Roberto Barroso, DJe: 6/6/2015. No mesmo sentido RE 788.064 AgR, entre outros.

 

Hamilton Dias de Souza, advogado, sócio fundador da Advocacia Dias de Souza e da Dias de Souza Advogados Associados, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Hugo Funaro, advogado tributarista e mestre em Direito Econômico e Financeiro pela USP, é sócio do Dias de Souza Advogados Associados.

 

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