Por Cecilia Mello e Flávia Silva Pinto*
Artigo publicado originalmente na ConJur
Em 2003, com o advento da Lei 10.803, o artigo 149 do Código Penal foi alterado para indicar as hipóteses em que se configura a redução de alguém à condição análoga à de escravo. A necessidade de modificação normativa se consubstanciou, em primeira análise, nas mudanças sociais ocorridas ao longo do tempo em relação à temática escravagista no Brasil.
Historicamente, o código de 1830 estabeleceu como crime a conduta de “reduzir à escravidão pessoa livre, que se achar em posse de sua liberdade”, para fins de servir à instituição legal da escravidão [1]. Posteriormente, fruto de um movimento abolicionista incontestável, a Lei Áurea foi promulgada em 1888 e, então, a escravidão passou a ser proibida neste país.
Apenas em 1937, o elaborado Projeto Alcântara incluiu entre os crimes contra a liberdade sexual a conduta de “reduzir alguém à condição análoga à de escravo” [2]. Diante disso, o Código Penal promulgado em 1940 dispunha do texto legal nos mesmos termos, o que demandava a aplicação de analogia [3].
Após a modificação introduzida pela Lei 10.803/2003, o tipo penal sofreu acréscimo em suas elementares, passando a dispor: “Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
Em razão da importância, a matéria é garantida constitucionalmente, conforme artigo 243 da Constituição Federal [4], assim como os artigos 1º, III e IV, e 7º também da CF, que tratam, respectivamente, da dignidade da pessoa humana, do valor social do trabalho e do rol de direitos dos trabalhadores [5]. No mais, o artigo 6 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos — Pacto de San José da Costa Rica (1969), dedica-se à proibição da escravidão e da servidão.
Nesse contexto, para a configuração do crime de redução à condição análoga à de escravo, basta a comprovação de que o agente praticou apenas uma entre as situações contidas no referido tipo penal [6]: 1) submissão fora do comum a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas; 2) sujeição a condições degradantes de trabalho; 3) restrição de locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Também é necessária a presença do elemento subjetivo do tipo: o dolo.
A pena atribuída quando comprovada a prática delitiva é de reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência. Mais, é possível que a reprimenda penal seja aumentada da metade se o crime for cometido contra criança ou adolescente e/ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem (incisos I e II, §2º do artigo 149 do CP), afora a eventual presença de circunstâncias agravantes (artigo 61 do CP).
Imperioso o detalhamento e a intepretação de cada uma das elementares desse tipo, justamente porque, na lei penal, não há definição concreta sobre a abrangência de tais conceitos, diferentemente do que ocorre no âmbito do Direito do Trabalho [7]. Portanto, recorre-se à doutrina e à jurisprudência.
Entende-se por trabalhos forçados, segundo Nucci, “a atividade laborativa desenvolvida de maneira compulsória, sem voluntariedade, pois implica em alguma forma de coerção caso não desempenhada a contento” [8]. A jornada exaustiva, por sua vez, resta caracterizada pela extensão exagerada do trabalho, de modo a causar esforço desproporcional, seja mental, seja corporal, do trabalhador. Pressupõe, assim, atitude tal que a vítima do delito seja levada a uma situação de exaustão [9].
A sujeição a condições degradantes de trabalho, outra elementar do tipo, reflete norma penal aberta, eis que inicialmente exige uma interpretação subjetiva, para posteriormente ser relacionada à premissa fática e às provas colhidas no processo penal.
Em linhas gerais, para uma condição ser reconhecida como degradante, não basta a atribuição, ao empregador, da pecha de severo, mesquinho ou insensível. O TRF-3 tem posicionamento no sentido de que “é preciso demonstrar a imposição de aflição intolerável à dignidade da pessoa humana, assim entendida a conflagração aviltante do núcleo essencial dos direitos fundamentais dos trabalhadores, os quais admitem temperamentos conforme o contexto histórico, geográfico, econômico, social e ambiental” [10].
Finalmente, a restrição da liberdade de locomoção guarda relação com qualquer meio que seja empregado para cercear a fruição do direito de ir e vir do trabalhador em função de dívida contraída com o empregador ou preposto seu [11].
Fato é que a interpretação do crime de redução à condição análoga à de escravo é controversa. Em 2012, o tema foi objeto de análise perante o STF, por ocasião do julgamento do Inq nº 3412/AL. O Plenário do STF considerou que o crime se configura quando há reiterada ofensa a direitos fundamentais, vulnerando a dignidade do indivíduo como ser humano. De forma mais aprofundada, ponderou-se não ser “qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo”, devendo: a) ser intensa e persistente; b) atingir níveis gritantes; c) caracterizar submissão a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, o que leva os trabalhadores a serem privados de sua liberdade e de sua dignidade.
De igual modo se posicionou o STJ ao julgar o AResp nº 1595939/GO, eis que a hipótese acusatória apenas revelava possíveis infringências às normas trabalhistas, que poderiam ser reparadas na esfera da Justiça do Trabalho. O STJ considerou que os elementos de prova constantes da ação penal não justificavam, por si, a condenação criminal, bem como destacou ser “dever da acusação não só expor o fato criminoso, mas, também, carrear aos autos todos os elementos probatórios capazes de viabilizar a condenação criminal do envolvido, caso contrário, a sua inércia levará à absolvição do acusado” [12].
Assim, para além da necessária interpretação das elementares do tipo, é indispensável que estas sejam dirimidas em um firme cotejo com as provas produzidas no âmbito da persecução criminal. A análise do conjunto probatório é de suma importância não apenas para se verificar a existência de uma premissa fática, mas se, efetivamente, a hipótese acusatória corresponde ao tipo penal.
Portanto, a discussão do crime de redução à condição análoga à de escravo ultrapassa a estrita análise do tipo penal e abrange o âmbito processual, especificamente no que se refere ao chamado standard probatório, a fim de que seja tomada a decisão sobre o que for provado. Observar o standard probatório, que consiste “no grau de suficiência probatória exigido para o acolhimento da hipótese acusatória” [13], é imprescindível para que a responsabilização criminal se prove acima de qualquer dúvida razoável. Em síntese, o standard probatório precisa ser alcançado para que a hipótese acusatória seja acatada como suficientemente provada e, portanto, considerada juridicamente verdadeira [14].
Ferrer-Beltran [15], discorrendo de forma geral sobre os requisitos do standard probatório, aponta que: 1) a hipótese acusatória deve ser capaz de explicar os dados disponíveis, integrando-os de forma coerente, e as predições relativas aos novos dados que a hipótese permitir formular devem ter resultado confirmado; e que 2) todas as demais hipóteses plausíveis explicativas dos mesmos dados compatíveis com a inocência do acusado, excluídas meras hipóteses ad hoc, devem ter sido refutadas.
Especificamente em relação ao standard probatório para a configuração do delito do artigo 149 do CP, merece destaque recente decisão proferida pelo Pleno do STF no julgamento do RE 1323708 [16]. Por maioria de votos, foi reconhecida a existência de repercussão geral da matéria para que sejam definidos os elementos necessários à configuração do delito de redução a condição análoga à de escravo e as provas necessárias para a condenações por esse crime.
Referido recurso extraordinário foi interposto pelo MPF contra decisão do TRF-1 que absolveu um proprietário de fazendas no Pará do crime de redução de 43 trabalhadores à condição análoga à de escravo [17]. No acórdão, considerou-se que a produção de provas foi deficiente e que a condenação só se justificaria em casos mais graves. Um dos fundamentos da decisão absolutória proferida pelo TRF-1 foi a necessidade de cada caso relativo à disposição do artigo 149 do CP ser analisado de acordo com seu histórico e sua realidade, compreendidos também os aspectos sociais do problema. Ou seja, cada premissa fática deve ser analisada isoladamente, de acordo com “as circunstâncias de tempo (duração), modo (intensidade e circunstâncias) e localização geográfica” [18]. Ainda, é ideal verificar as possíveis conjecturas particulares do indivíduo acusado.
Aqui, enfatiza-se a primordialidade de aplicação do Direito considerando a característica de cada caso concreto, inclusive (e principalmente) no que se refere ao comportamento específico do acusado, em aplicação analógica ao princípio constitucional de individualização da pena (artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal).
Em outras palavras, importa verificar as circunstâncias gerais do espírito do agente delitivo e as condições específicas nas quais a hipótese acusatória se baseou, eis que o crime de redução a condição análoga à de escravo não pode ser interpretado de igual forma em contextos sociais, regionais, ou mesmo laborais, completamente distintos.
Dessa forma, eventuais circunstâncias verificadas no âmbito de uma carvoaria rural — diante da dureza da própria atividade, mas ausente qualquer subjugação humana — não podem ser confundidas com redução à condição análoga à de escravo [19]. Por outro lado, impossível afastar a configuração deste crime se devidamente comprovado nos autos que trabalhadores não contaram com fornecimento de água potável, serviços de privada por meio de fossas ou similar e habitação adequada, sendo-lhes fornecido alojamento precário em barracos cobertos de palha e lona, sustentados por frágeis caibros de madeira branca, no meio da mata, sem qualquer proteção lateral, com exposição a riscos [20].
O julgamento de mérito do RE 1323708 pelo STF é medida de relevância extrema para a definição das premissas necessárias a tipificação do crime previsto no artigo 149 do CP e [21], muito especialmente, para a delimitação do correspondente standard probatório mínimo, considerado o amplo espectro da nossa diversidade social.
[1] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal: decreto-lei n. 2848, de 7 de dezembro de 1940. Rio de Janeiro: Forense, 1982, v.6, p. 199.
[2] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal: decreto-lei n. 2848, de 7 de dezembro de 1940. Rio de Janeiro: Forense, 1982, v.6, p. 199.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito penal: arts. 121 a 212 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 283.
[4] “As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no artigo 5º”.
[5] TST, Ag: 10015953220155020318, Relator: Claudio Mascarenhas Brandão, 7ª Turma, j. 02/12/2020, p. 04/12/2020.
[6] Nesse sentido: STJ, Agravo em Recurso Especial nº 1595939/GO (2019/0298624-2), ministro Ribeiro Dantas, j. 15/05/2018
[7] PORTARIA Nº 1.129, DE 13 DE OUTUBRO DE 2017: Dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos do artigo2-C da Lei nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990; bem como altera dispositivos da PIMTPS/MMIRDH Nº 4, de 11 de maio de 2016.
[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 761.
[9] SOUZA, Luciano Anderson de (Coord.). Código penal comentado. São Paulo: Revista dos tribunais, 2020, p. 566.
[10] TRF 3ª Região. Apelação Criminal nº 80944 (0003003-93.2013.4.03.6108), Relator: Desembargador Federal Fausto de Sanctis, j. 28/05/2020, p. 11/06/2020.
[11] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 761.
[12] STJ, Agravo em Recurso Especial nº 1595939/GO (2019/0298624-2), ministro Ribeiro Dantas, j. 15/05/2018.
[13] ROSA, Alexandre Morais. Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A. Florianópolis: Emais, 2021, p. 244
[14] ROSA, Alexandre Morais. Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A. Florianópolis: Emais, 2021, p. 249.
[15] FERRER-BELTRÁN, Jordi (tradução Vitor de Paula Ramos). Valoração racional da prova. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 210.
[16] STF, RE 1323708/PA (0000547-65.2007.4.01.3901), Relator: ministro presidente Luiz Fux, Tribunal Pleno, j. 06/08/2021, p. 18/08/2021
[17] TRF-1, APR 00005476520074013901, Relator: Desembargador Federal Néviton Guedes, Quarta Turma, j. 25/02/2019, p. 20/03/2019.
[18] TRF-1, APR 00005476520074013901, Relator: Desembargador Federal Néviton Guedes, Quarta Turma, j. 25/02/2019, p. 20/03/2019.
[19] TRF-1, APR 00015184720074013805, Relator: Desembargador Federal Olindo Menezes, Quarta Turma, j. 09/02/2021.
[20] STJ, REsp 1843150/PA 2019/0306530-1, Relator: ministro Nefi Cordeiro, T6 – Sexta Turma, j. 26/05/2020, p. 02/06/2020.
[21] STF, RE 1323708/PA (0000547-65.2007.4.01.3901), Relator: ministro presidente Luiz Fux, Tribunal Pleno, j. 06/08/2021, p. 18/08/2021